Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, agosto 14, 2006

Mãe Coragem!
WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
PARATI (RJ)


Duas coisas emocionam na exibição da cinebiografia “Zuzu Angel”. Em primeiro lugar é muito caprichada produção brasileira, portanto falada em português e por isto sempre naquela acirrada disputa de mercado com a pesada concorrência hollywoodiana. E depois porque trata de um tema que, embora não mais tabu, ainda hoje é de certa forma espinhosa: os anos de chumbo da ditadura militar (1964-85) que flagelou o País principalmente nos anos 1960 e 1970.

É um dos lançamentos do Cinema nacional mais aguardados do ano. O diretor Sergio Rezende tem currículo respeitável e se inscreve entre nossos mais notáveis realizadores. É um afiado contador de histórias que retira de nossa História maior. Já mostrou trajetórias polêmicas, como a do guerrilheiro Carlos Lamarca, do jornalista e político Tenório Cavalcanti, do Visconde Mauá, do líder messiânico Antonio Conselheiro.

Seu personagem, desta vez, é uma mulher, a estilista mineira Zuleika Angel Jones, aliás Zuzu Angel, interpretada pela atriz Patrícia Pilar (TV GLOBO). A história dela chega ao Cinema após vinte anos de tentativas, todas frustradas ou pela delicadeza do assunto, ou por dificuldades de viabilizar uma produção de época que resultasse em altíssima qualidade. Mais recentemente, Walter Salles tinha o projeto mais ou menos delineado, com roteiro do escritor Jorge Duran e a atriz Fernanda Montenegro (TV GLOBO) para o papel-título. Mas ficou mesmo no projeto.

Outros cineastas quiseram realizar o filme, mas foi afinal Sergio Rezende, fascinado pela personagem, quem acabou gravando em imagens a saga de Zuleika Angel. Que parte de sua notória trajetória como estilista de talento para chegar a uma morte trágica.

Sem nunca ser militante política, Zuzu, como era conhecida profissionalmente no meio da alta costura, teve a vida transformada em pesadelo quando o filho, Stuart Angel Jones (interpretado em cena pelo jovem e talentoso ator Daniel Oliveira – TV GLOBO), entrou na luta armada, foi preso em 1971, auge da repressão militar, e desapareceu para nunca mais ser visto.

A princípio ponderada e apolítica a ponto de criar antagonismos com o filho engajado, Zuzu virou mãe leoa indomável diante do ocorrido com o rapaz. Mobilizou meio mundo, inclusive o então secretário de Estado do governo dos Estados Unidos da América (EUA), Henry Kissinger. Ganhou espaços na mídia nacional e internacional, fez de sua profissão uma tribuna para denunciar os excessos de violência do regime militar, sempre em busca do paradeiro do filho. Passou a ser vigiada, perseguida, policiada. Até que em 1976 seu carro foi fechado no Túnel Dois Irmãos, que liga a Gávea à Barra da Tijuca, área nobre da Capital fluminense. Zuzu morreu no local, hoje rebatizado Túnel Zuzu Angel.

Rezende e seu co-roteirista Marcos Bernstein não têm nenhum dúvida de que Zuzu foi assassinada. Para acervo de informações, recorreram a depoimentos da filha da estilista, a jornalista Hildegard Angel (Jornal do Brasil), e da atriz Elke Maravilha, na época modelo internacional e muito amiga de Zuzu Angel.

Para o diretor, o filme vai permitir reavaliar a importância da figura do personagem central. Segundo ele, ''na época, a militância política de oposição ao regime fazia restrições a ela porque não militava em movimento nenhum, em facção nenhuma, nem na Anistia Internacional. Hoje reconhecem que Zuzu Angel, mesmo sozinha, conseguia mobilizar o mundo inteiro nas denúncias das atrocidades”.

Outros personagens verídicos compõem o painel desta tragédia que agora é passada a limpo. Entre eles a mulher de Stuart, Sonia Leal (interpretada pela, também, talentosa atriz Leandra Leal – TV GLOBO), também presa e assassinada; a então jovem manequim Elke Maravilha (interpretada por uma esforçada Luana Piovani); Heleno Fragoso (interpretado por Alexandre Borges – TV GLOBO) o advogado contratado por Zuzu Angel à época. E militares da repressão, como os interpretados brilhantemente pelos atores Othon Bastos (TV GLOBO) e Flavio Bauraqui.

Quase inteiramente filmado em Juiz de Fora (MG), com orçamento por volta dos 6,5 milhões de reais, esta cinebiografia “Zuzu Angel'' tem arrebatado grandes segmentos de platéia, como nós que participamos da Festa Literária Internacional de Parati (o Flip’2006), encerrada no Domingão dos Pais, 13, aquela mesma que lotou as salas de Cinema para ver os recentes longas-metragens: “Cazuza: O tempo não para!”; e ''Olga''.

Na trilha sonora produzida por Cristóvão Bastos, destaque natural para a música ''Angélica'', composta especialmente pelo cantor e compositor carioca Chico Buarque de Holanda em homenagem ''velada'' a Zuzu Angel, um ano depois da morte dela. Foi com Chico Buarque, aliás, que Zuzu deixou uma carta pouco antes de morrer, denunciando que, se alguma coisa acontecesse a ela, os autores seriam os mesmos que tinham dado fim a vida de seu filho Stuart.

Existem duas seqüências-chaves no filme “Zuzu Angel”: a primeira delas se passa no julgamento de Stuart Angel Jones, filho de Zuzu. Não podendo comparecer à ocasião por estar morto, é sua família (em especial sua mãe) e seu advogado que responderão ao processo. Mesmo sendo Stuart absolvido por falta de provas, Zuzu Angel, indignada pela situação absurda, se levanta e, aos gritos, em pleno tribunal, protesta acusando “os assassinos do filho de estarem disfarçados de juízes”.

Seguindo a mesma linha de tensão dramática, a segunda seqüência referida diz respeito a um outro protesto engajado por Zuzu. Agora de maneira racional e cínica, ela propõe em um de seus desfiles de moda em Nova York (EUA) uma coleção toda baseada em questões políticas. Ao contrário das comuns estampas chamativas e cortes elaborados, esta coleção vem simples, com um visual apagado e as roupas marcadas por desenhos de pássaros enjaulados e garotos militares. No fim, a “santa” Zuzu Angel, toda vestida de negro e com um véu na cabeça, desfila com a foto de Stuart.

Descritas as duas seqüências, se coloca a pergunta: Por que essas seqüências podem ser consideradas como seqüências-chave? E a resposta está no fato delas habitarem os principais indicativos da mudança ideológica pela qual a personagem-título passa. Mais do que a afirmação no final do filme – o famoso “eu mudei”, que o diretor Sergio Rezende não hesitou em colocar –, estas seqüências marcam a figura emblemática e militante que foi Zuzu Angel. Isto, pois, como se imagina, a trajetória política da estilista só despertou a partir do desaparecimento do filho. Mas não são especificamente as seqüências referidas que nos interessam e sim seus desdobramentos imediatos existentes no filme.

Em contíguo às respectivas seqüências, vemos Zuzu Angel comentando as repercussões de seus protestos. Na primeira, com seu advogado Heleno Fragoso e na segunda com sua colega e modelo-fetiche Elke Maravilha . E se as duas seqüências antecedentes eram representativas da construção e mutação de Zuzu Angel - personagem, as seqüências seguintes são representativas da visão e direcionamento de Zuzu Angel - filme. Em ambas o personagem aparece comentando os referidos acontecimentos com um sorrisinho no rosto. Um sorrisinho que tenta passar um sabor de vitória. Um sorrisinho que sai meio sem querer.

O filme mexe com questões ainda não naturalizadas pela cultura brasileira. A temática do período militar no Brasil, marcado por perseguições, desaparecimentos, torturas e mortes, e suas conseqüências imediatas e futuras são ainda feridas não cicatrizadas que carecem de um tratamento especial e cuidadoso. A relação distanciamento-aproximação do fato histórico tem no Cinema peculiaridades que devem ser levadas em conta.

O distanciamento – temporal e crítico – é possível, pois já se vão cerca de 40 anos. A idéia de aproximação é facilmente viabilizada por figuras particulares que passam por um tratamento romântico. E se existem as duas possibilidades, elas (ainda) não podem ser desvinculadas. Seja na política ou na economia, mas sobretudo na cultura e tradição, o País ainda carrega as mazelas do período do antigo regime de exceção.