Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, outubro 25, 2005

Meu cantinho predileto

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
RIO DE JANEIRO


“Se alguém perguntar por mim, diz que eu fui por ai, levando um violão debaixo do braço/ Em qualquer esquina eu paro, em qualquer botequim eu entro... E se houver motivo é mais um samba que faço / Mas se quiseres saber se volto, ora, diga que sim. Mas só depois que a saudade se afastar de mim, mas só depois que a saudade se afastar de mim! Eu tenho um violão para me acompanhar, eu tenho muitos amigos, eu sou popular. Tenho a madrugada como companheira... Mas a saudade me rói, o meu peito me trai...Eu estou na cidade... sempre pensando nela”, diz o bom samba do mestre Zé Kéti.

O fim de semana da hiper-atividade foi assim, tipo musical. E teve de tudo o máximo: muito jazz, música brasileira, sons experimentais e rubricas da nova cena do Pop mundial, que outra vez marcou presença lá no Museu de Arte Moderna (MAM) nos braços da Guanabara sob as vistas do Redentor, em mais uma edição do TIM Festival (encontro que já faz parte do calendário musical brasileiro), onde estivemos muito bem acompanhado; rodeados de amigos muitíssimo queridos (a Alessandra, o Oto, a Sandra, o Marcello, a Valéria, a Paulinha, a Aninha, o Gustavo, a Tetê, a Cristina, a Inês, o Felipe, a Corine, o Zé Eymard, o Breno, a Luana, o Pedro, a Bianca e a Mônica), amizades de toda uma vida. Depois veio a madrugada domingueira de samba da nossa Estação Primeira, no Mangueirão, preparativa para a folia momesca que se aproxima.

Só o nosso Mengão decepcionou frente aos cruzmaltinos em São Januário. Tudo isso entremeado por um Referendo fora de hora. Mas não tem nada não, nem tudo está perdido. Essa é a nossa Cidade Maravilha Mutante que assusta, apaixona e inebria.

A verdade é que quando a barra pesa para o meu lado, eu faço o que acabei de fazer agora, um bate-perna sem propósitos pelo meu quarteirão favorito aqui no Rio, um dos últimos com as calçadas livres e o espírito democrático da cidade intocado. Ali, no final do Leblon, onde o bicho ainda não pega. Lá, onde la cosa non se queda pelluda. Pelo menos por enquanto.

Começo na esquina das Ruas Aristides Espínola com Ataulfo de Paiva e quem me vê assim de longe, apenas um sujeito esquisito, óculos azul, bermundão branco, camiseta da Dolce & Gabana, jornal debaixo do braço e o iPod volume máximo pendurado no ouvido, pode achar que é mais um maluco olhando os preços idem daquela loja de gadgets eletrônicos da Brasif. O pepino é pior. Erro de pessoa. Não se aproxime. Às vezes morde. Às vezes sopra. Vamos em frente.

Quando a barra pesa, eu saio trotando pela calçada do final do Leblon, um desses raros paraísos cariocas em que ninguém grita nada a um real e a sensação de segurança comparada com o resto da cidade é irreal. Costumo levar junto todos os meus fantasminhas camaradas e mais aqueles outros com que, outrora e amiúde, cruzei por ali. Eu olho a vitrine da Brasif, perfumes franceses que me fariam irresistível diante das narinas dela, eu olho aquilo tudo, mas por dentro não vejo nada além do que se passou naquela noite. Faz tanto tempo. Ali era o restaurante Real Astória e de cima de uma das mesas, aquela que ficava embaixo de uma cabeça de touro, ou que bicho fosse da montanha alucinógena do carioca, do alto da mesa o nosso saudoso poeta Cazuza começou a cantar “Love me tender” para seduzir alguém numa mesa ao lado. Todos mortos.

Cazuza, o Real Astória, as canções românticas, a esperança de se esbarrar com um amor tranqüilo na mesa ao lado — todos definitivamente mortos, e eu, para ser sincero, por mais reanimado que sempre fique depois de sentar para um café no bistrô Garcia & Rodrigues, logo depois da Brasif, eu também não estou me sentindo muito bem. É justo por isso, a propósito e, outrossim, que quando alguma nuvem cinza me embota a página em branco onde anoto a vida, é justo nesse momento que eu saio às ruas sem saber pra quê. Sigo na esperança talvez que o acaso, por mero descaso, me leve a você e a todas essas músicas que vivem tocando na cabeça e fazem esquecer alguma coisa de que felizmente já não me lembro mais agora.

As pernas passeiam alheias, mas o pensamento, ele parece coisa à toa, zoa e começa a pensar que aquilo ali, graças a Deus, foi o Baixo Leblon dos doidões. Malucos espalhados pela esquina, todos orgulhosos da sensação de serem os únicos a estar vendo, no lugar das bolachas de chope que atiravam para o ar, os esquadrões de discos voadores que finalmente invadiam a Terra. A esquina do ridículo era, pelos estertores dos 1990, o lugar onde os extraterrenos pousariam se um dia resolvessem nos iluminar de espanto. Não vieram. Veio a polícia. Levou o empresário Chico Recarey, dono da mitológica Pizzaria Guanabara. Azeite.

O Rio de Janeiro está prendendo todos seus comerciantes de pizza, e se você quer saber qual é o mosquito, qual é o pó por trás dessa parada, procure alhures porque aqui está só um sujeito com cara de poucos amigos, óculos azuis e bermudão branco, um sujeito fugindo dos problemas da existência e interessado apenas em perceber que do lado do bistrô Garcia & Rodrigues, sempre vazio, tem um botequim de porteiros e motoristas, sempre cheio, e que isso deve significar alguma coisa muito inteligente que felizmente não será revelada aqui e agora.

Cronista em recesso. Com forças, no máximo, para dar mais cinco passos depois do boteco, chegar na Droga Raia da esquina com a Rua Rita Ludolf e pedir, ei, moço, tem Rivotril?. Caminha-se contra o vento. Segue-se a terapia de chutar chapinha. É da vida. Vai melhorar.

Eu gosto de em seguida atravessar a Rua Ataulfo de Paiva em direção à Livraria e cafeteria Letras & Expressões, folhear como quem não quer nada a revista “W” na pilha logo ao lado da porta, sonhar com aquelas gazelas elegantes da moda internacional e desejar um dia lhes ser servil passarela. Percorro a loja por dentro até a saída da Rua Dias Ferreira, onde dobro à direita e vou rápido ler mais uma vez o meu texto preferido, de todos os pregados pelas paredes do Rio. Aquele que a senhora Leila Svartsnaider, proprietária do prédio inteiro de número 64, escreveu e colocou na porta da lojinha do térreo há muito fechado, ao lado do restaurante Carlota.

“Sou a conchinha do mar e o tatuí que têm saudades da vida adorável na areia da praia”, começa Leila, ex-mulher do talentoso músico e compositor João Donato, dona de uma dezena de imóveis na rua. É um texto endereçado ao nosso alcaide Cesar Maia (PFL-RJ), mas poderia ter sido escrito para saudar os ETs numa noite do Baixo Leblon dos anos 1980/90. “Sou o gato do churrasquinho, do atirei o pau no gato, traiçoeiro para os small minded and small spirit people . Sou o mendigo emudecido de tanto gritar socorro”, continua Leila sem que nada tenha a ver com nada, no que faz muito bem. Essa é a graça da Dias, a rua-síntese da deliciosa diversidade desta Cidade Maravilha Mutante.

Onde mais aqueles dois bicheiros anotando vacas e pavões sentados num caixote, na porta da finíssima loja de chocolates que a senhora de Djavan abrirá nos próximos dias?

Onde mais, se não na porta do 78, aquele cartaz com quatro fotos de um papagaio e o apelo desesperado, “não sou brasileiro, fui acostumado a comer comidinhas especiais e a ser alimentado na boca, minha família me ama muito e minha mãe está sentindo muito a minha falta”? Onde mais o perfil do papagaio desaparecido, seguido da oferta de R$ 200 a quem o encontrar e o pedido de que o devolvam nos telefones tais?

Um quarteirão com três japas, duas lojas de uniformes para empregados, uma de piano, outra de vestidinhos da Isabela Capeto, um escritório do economista e ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga e, no meio desse fausto todo, onde mais?, o botequim fuleiro, o Embalo Bar, do seu Ivan, em que um bando de desocupados sem camisa gasta a tarde jogando damas de um jeito tão concentrado que nem percebe a atriz Vera Fischer (TV GLOBO), a melhor de todas as damas do Alto Leblon, passando rumo ao Walter’s Coiffeur.
Não quero as três mulheres do sabonete Araxá, meu petrarca. Não me abram conta em qualquer paraíso fiscal ao sul, meus senhores. Menos, bem menos. Preciso apenas vestir o tempo com essas bermudas, o coração com essas sandálias, a saúde com essa camiseta e ao fim do passeio pelo meu predileto quarteirão do Leblon levar a vida para se realimentar de infância com a comidinha do Celeiro. Ei, dona Rosa Herz, me dá o mingau de sagu com banana!