Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, setembro 26, 2005

Colóquio lingüístico

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
SÃO PAULO

Peço licença ao meu amigo e colega jornalista Joaquim Ferreira dos Santos (Jornal O GLOBO) para mudar ligeiramente o rumo da prosa iniciada, na última Segunda-feira, em sua coluna pessoa física. Nela, Joaquim lamentava, com toda a paixão pela língua portuguesa, o último cacoete coloquial: “então, o que acontece”, não raro seguido de, argh, pontos de exclamação e interrogação.

O colega sacou que o uso de tal expressão trai, simultaneamente, pura e simples falta do que dizer, recurso para ganhar tempo, gancho retórico para prosseguir num assunto que só interessa ao seu emitente, um zero semântico. Assino embaixo. Gostaria de, cá do meu modesto canto nesta AGÊNCIA O GLOBO, acrescentar alguns palpites e chutes a título de colaboração.

Por amor ao bom português qualquer bom brasileiro apreciará a pérola que vai abaixo, de Ricardo Freire. Colhi-a ao acaso, publicada numa revista há quase dois anos.

“Não, por favor, nem tente me disponibilizar alguma coisa, que eu não quero. Não aceito nada que pessoas, empresas ou organizações me disponibilizem. É questão de princípios. Se você me oferecer, me der, me vender, me emprestar, talvez eu venha a topar. Até mesmo se você tornar disponível, quem sabe, eu aceite. Mas, se você insistir em disponibilizar, nada feito.

Caso você esteja contando comigo para operacionalizar algo, vou dizendo desde já: pode tirar seu cavalinho da chuva. Eu não operacionalizo nada para ninguém. Tampouco compactuo com quem operacionaliza. Se você quiser, eu monto, eu realizo, eu aplico, eu ponho em operação. Se você pedir com jeitinho, eu até implemento. Mas, operacionalizar, jamais. (....)

Por falar nisso, é bom que você saiba que eu parei de utilizar. Assim, sem mais nem menos. Eu sei, é uma atitude um tanto quanto radical da minha parte, mas eu não utilizo mais nada. Tenho consciência de que a cada dia que passa mais e mais pessoas estão utilizando, mas eu parei. Não utilizo mais. Agora só uso. E recomendo. Se você soubesse como é muito mais elegante, também deixaria de utilizar e passaria a usar.

Sim, estou me associando à campanha nacional contra os verbos que acabam em ‘ilizar’. Se nada for feito, daqui a pouco eles serão mais numerosos do que os terminados simplesmente em ‘ar’. Todos os dias os maus tradutores de livros de marketing e administração disponibilizam mais e mais termos infelizes, que imediatamente são operacionalizados pela mídia, reinicializando palavras que já existiam e eram perfeitamente claras e eufônicas.

É triste demorar tanto tempo para a gente se dar conta de que ‘desincompatibilizar’ sempre foi um palavrão. Precisamos reparabilizar nessas palavras que o pessoal inventabiliza só para complicabilizar. Caso contrário, daqui a pouco nossos filhos vão pensabilizar que o certo é ficar se expressabilizando dessa maneira. Já posso até ouvir as reclamações: ‘Você não vai me impedibilizar de falabilizar do jeito que eu bem quisibiliser.’ Problema seu. Inclua-me fora dessa ".

Por viver das palavras, qual o colega Joaquim Ferreira dos Santos, mantenho meu ouvido (tão poderoso como o ouvido dos tuberculosos, dizia o meu avô!) voltado para o que as pessoas falam. Sobretudo, quando estou longe de casa. Não para aquilo que os políticos e os gramáticos gostariam que elas falassem: para o que de fato elas falam.

Assim, parafraseando o romano Terêncio, nada do que é palavra me é estranho, mesmo numa metrópole de costumes estranhíssimos como nesta Sampa cosmopolita do dinheiro e do endinheirado povo tapuia Tupiniquim.

Já mencionei a descoberta, graças aos extraterrestres disfarçados de adolescentes em minha volta, de expressões da riqueza metafísica de uma “muito sem noção”. Há dias, anotei uma “totalmente excelente”, que, mais dia, menos dia, haverá de ter serventia.
Até por isso vinha me incomodando o exagero no uso do “então”, desde o desembarque no Aeroporto de Cumbica (SP). Não “então, o que acontece”, que não captei: “então”, em carreira solo, onipresente nos inícios de frase. “Então, isso mesmo. Então, o contribuinte deve entregar a declaração até o dia 29 de abril. Então, com esse prazo a Receita espera receber mais dois milhões de declarações. Então...”.

Longe de mim buscar culpados pela nova muleta oral. No entanto, a bem da verdade, “então” quase sempre me chega ao ouvido com sotaque paulista. Em nove entre dez casos, aliás, “então” arrasta um ataque de gerundismo (já vou estar explicando o que é isso... pronto, expliquei), contribuição anglicista do telemarketing de empresas/instituições instaladas em São Paulo.

Haveria razão para tantos “então” na outra ponta das rodovias Fernão Dias e Presidente Dutra? Jantando no Gero, no Sábado, pensei na ressurgência do italiano ancestral de muitos de seus habitantes, no qual allora é vírgula. Estranho? Já ouvi na Universidade, professores de língua e literatura, explicar o descompasso nas concordâncias dos paulistas e de pessoas aqui aculturadas, como o vosso presidente da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP), tipo “dois pastel” , como eco do plural italiano, feito sem S.

O “então” engrossa o tráfego de lá para cá. Ainda mangamos de “semáforo” e “holerite”, mas usamos, sem pestanejar, palavras à paulista. São os casos, por exemplo, de “balada”, para noitada – por sinal, a melhor diversão na Cidade de São Paulo -, e de “descolado”, para moderno e/ou chique. Tá ligado? Implico com “catracar”: lá onde fui malcriado, tem conotações proctológicas.

Porém, durante muitos anos, os sulistas tiveram de aturar o falar carioca. É a hora de os paulistas ir a forra. Ela, porém, não está solta no tempo e no espaço. Está ligada a circunstâncias históricas: embora a maioria das telenovelas continue a ser produzida no Rio de Janeiro, e até a TV Record esteja indo produzir as suas telenovelas na Cidade Maravilha Mutante para aproveitar a população artística daquele balneário aos pés do Redentor, nunca os cariocas estiveram tão mal politicamente.

Não têm representatividade no ministério — chamado de paulistério — ou no governo federal e há um desnível ululante entre os ocupantes dos governos estaduais e dos governos das capitais. Compare o governador Geraldo Alckmin (PSDB-SP) com a governadora Rosângela Matheus (PMDB-RJ). Aí está a diferença, não nos índices de criminalidade.

Então, mano, São Paulo é da hora no Brasil. Bem como o Brasil é da hora na comunidade lusófona, já que as telenovelas tornaram nosso português hegemônico.

Quando o deputado e candidato governista a Presidência da Câmara dos Deputados Aldo Rebelo (PcdoB) não tem nenhuma articulação política melhor para fazer, a não ser legislar sobre uma língua viva, e o Itamaraty dispensa o domínio do inglês pelos candidatos a diplomata, tenta-se tapar o sol com a peneira: a nação (ou o estado ou cidade) mais forte dá não só as cartas, dá também as palavras. O inglês se beneficiou por ter emplacado em seqüência duas potências hegemônicas mundiais, o Reino Unido da Grã-Bretanha e os Estados Unidos da América (EUA). O camarada Rebelo deveria saber que não adianta remar contra a História.

Sugiro, a quem quer expurgar o idioma dos estrangeirismos, que arranque dos dicionários as páginas com palavras iniciadas por “al”. Nelas abundam belos vocábulos legados pela ocupação árabe da Península Ibérica de 711 a 1492. Um Brasil e meio.

Mas, é sempre agradável encontrar aliados em nossas guerras de amor. No caso presente, pelas palavras. Amor e respeito pelas veteranas e honestas palavras do português falado no Brasil.

Não se trata de paixão cega ou surda: todo idioma que se preza não hesita em adotar palavras que o enriqueçam, venham de onde vierem. O que seria de nós, por exemplo, sem bares ou motéis? Temos de ter a humildade de incorporar até mesmo termos não aportuguesados. Ou vamos trocar o mouse por um ratinho ou camundongo?

Mas ter a mente e o coração abertos para adoções não exige que se abra mão da inteligência. Esta nos impede, por exemplo, de aceitar “planta” (do inglês “plant”) com o sentido de instalação industrial. Porque é desnecessário e pernóstico — e o bom idioma preserva sua força e sua herança importando apenas o indispensável.