Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, março 05, 2006

Carnaval: belezas, sacrifícios e incoerências...

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
RIO DE JANEIRO


Todo ano a mesma dúvida hamletiana: desfilar ou não, voltar ou não ao Sambódromo da Marquês de Sapucaí, no Sábado das Escolas de Samba Campeãs do Carnaval Carioca. Houve um tempo — afinal, sou freguês desde a inauguração daquela Passarela do Maior Espetáculo Terra, naquele Verão de 1984 — em que isso não se colocava. Valia qualquer sacrifício, inclusive o de passar quinze horas em pé, às vezes sem poder ir ao toellet. Hoje, com muito mais conforto, a disposição de ir não deveria comportar hesitações. Mas é que o tempo faz a sua parte. De qualquer maneira, não pertenço à ala dos que acham que o Carnaval “autêntico” morreu e que os desfiles das grandes agremiações, berço do nosso Samba, deixaram de ser manifestações culturais para se transformar em shows para gringo ver.

Os desfiles mudaram, é verdade, e nessa evolução muita coisa boa se perdeu. Não há mais, por exemplo, obras-primas como “Yes, nós temos Braguinha” ou “O Mundo Encantado de Monteiro Lobato” (só para citar a nossa Estação Primeira de Mangueira!), pois o samba virou marcha. Em compensação, nada se compara à riqueza e ao bom gosto das fantasias atuais, ao virtuosismo das baterias, à inventividade das alegorias e à grandiosidade dos carros.

Sou um folião participante, amante mangueirense, mas não concordo com essa história de que Carnaval bom foi aquele que passou. Nunca se brincou tanto nas ruas quanto agora. Cada bairro tem seu bloco ou sua banda. “O Cordão do Bola Preta” e “O Boitatá” conseguiram até revitalizar o Centro da Cidade do Rio de Janeiro nesse Carnaval. Os ensaios técnicos, de todas as agremiações, têm atraído um público quase tão grande quanto os desfiles oficiais. Há quem os prefira por serem mais espontâneos. Outra alegação é de que as agremiações se repetem e são parecidas. Fala-se em “mesmice”, esquecendo-se de que se pode dizer o mesmo das grandes óperas, que se repetem sempre e repetem a emoção que despertam. Vá dizer ao povão da arquibancada que a minha Estação Primeira e a Portela do Paulino da Viola e do Zeca Pagodinho são a mesma coisa.

É só falar em decadência para surgir uma surpresa na bateria ou uma inovação nas alegorias. Agora mesmo foi dado um salto de qualidade. Visitei a monumental Cidade do Samba, na Zona portuária carioca. O alcaide César Maia (PFL-RJ) queria erigir uma extravagante sucursal do Museu Guggenheim e acabou construindo uma obra, essa sim, indispensável à cultura da Cidade Maravilha do Brasil.

Ouvi de sambistas que a Cidade do Samba é tão ou mais importante que o Sambódromo construído pelos saudosos Leonel de Moura Brizola e Darcy Ribeiro nos anos 1980 na Rua Marquês de Sapucaí. Uma das inovadoras dos desfiles do Rio de Janeiro ao lado do carnavalesco Fernando Pamplona na virada da década de 1970, a carnavalesca Maria Augusta (comentarista da TV GLOBO), que sabe tudo de Carnaval, acredita que o espaço influenciará inclusive na criatividade. Além de concentrar todas as etapas da produção carnavalesca, com um gigantesco barracão para cada uma das 14 agremiações do Grupo Especial da Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (LIESA), a Cidade do Samba permitiu um ponto de vista inédito. Agora, os carros alegóricos de grandes dimensões (às vezes de dez metros de altura), que eram feitos por partes, são construídos por inteiro e podem ser vistos de cima, que é como se vê na avenida. “Nunca se pôde observar os carros desta perspectiva”, me disse a carnavalesca, do alto de um mezanino do barracão da Unidos de Vila Isabel. “A mudança vai melhorar a qualidade estética dos carros” .

Ainda na Segunda-feira Gorda do Carnaval, 27, desfilamos com a Carranca da Mangueira pela Marquês de Sapucaí com jeito de legítima candidata ao título de 2006. A Verde-e-rosa agitou as arquibancadas, que ficaram coloridas por bandeiras da escola . A comissão de frente, como de costume, arrasou. O bailarino Carlinhos de Jesus outra vez foi o responsável pela coreografia da comissão de frente da Estação Primeira, merecedora das quatro notas dez que recebeu dos jurados esse ano. Carlinhos, que durante o desfile da escola integrou a comissão de frente, ao entrar e sair de dentro de uma imensa carranca, reconheceu as falhas que levaram a Mangueira à não conquistar algumas notas de excelência em 2005. Mas foi otimista ao avaliar o desfile deste ano. A Mangueira fez um desfile que refletiu todo o seu brilho e o seu gigantismo, uma lição para o desfile desastroso dos Acadêmicos da Rocinha na noite anterior (no Domingo, 26).

A esperança do sertão, cantada no samba-enredo, foi na verdade a esperança de a nossa Mangueira florescer novamente com o título de campeã do carnaval. Afinal, como diz a letra entoada pelo mestre Jamelão do alto dos seus 91 anos, o sertanejo transformou em verde e rosa a esperança do Sertão. E a Estação Primeira lançou uma chuva imaginária, fertilizando o solo do samba com o enredo "Das águas do Velho Chico nasce um rio de esperança".

Entre muitos destaques, esteve o abre-alas, idealizado e protagonizado por Carlinhos de Jesus que representou o capitão da Carranca mangueirense. Os julgadores aplaudiram de pé. Também brilharam as baianas, com extremo bom gosto e utilizando materiais típicos do Nordeste. Os carros alegóricos variaram do plástico ao delirante e a alegria dos integrantes da escola contagiou o público em todo o Sambódromo. Ao fim do desfile, a distribuição de rosas pelos componentes aos gritos de "É campeã" teve o desfecho perfeito para uma grande noite mangueirense.

Aquela carranca que a comissão de frente levou para o sambódromo pesa cerca de meia tonelada e foi preciso que 11 homens a carregassem. O peso da alegoria fez com que Carlinhos, que saía de dentro dela, chegasse com machucado ao fim do desfile. E a Mangueira fez uma apresentação irretocável, novamente com o Nordeste como o norte de sua explosão cultural. Suas chances de repetir o título de 2002, também com enredo nordestino, eram grandes. Mas quando os envelopes dos jurados foram abertos na Quarta-feira de Cinzas, 01, a nossa Estação Primeira, que faz um carnaval profissional com o suor e sacrifício da Nação Mangueirense, sem admitir banqueiros do Jogo do Bicho como patronos, e sem concessão às “Marias-carnaval-siliconadas-peladonas-de-revistas-masculinas” para crescer e aparecer como “Madrinhas de Bateria”, preferindo a tradição e o samba no pé das belas garotas da Comunidade do Morro, ficou com a quarta colocação deste Carnaval 2006.

Houve um tempo em que os enredos das escolas de samba eram tão incongruentes e sem sentido que inspiraram o nosso saudoso cronista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) a compor o seu genial “Samba do crioulo doido”. Hoje o disparate aparece não no desfile das agremiações do Samba, mas em geral na Quarta-feira de Cinzas, quando são anunciados os resultados. A apresentação na noite deste Sábado das Campeãs, 04, foi a ilustração de como são subjetivos e aleatórios os critérios de julgamento, em cujo mérito não quero entrar. Registro apenas certas incoerências. A grande campeã, a Unidos de Vila Isabel (que empolgou e cantando a América Latina e seus povos na Passarela da Rua Marquês de Sapucaí, sob o financiamento do polêmico governo do general-presidente da República da Venezuela Hugo Chaves, através do patrocínio da Companhia estatal de Petróleo daquele país), não era a favorita, embora tenha feito um belíssimo desfile na madrugada de Segunda-feira, 27 e tenha trazido para a avenida a verdadeira musa do Carnaval deste ano, a atriz Letícia Spindller (TV GLOBO) sambando e vestida da cabeça aos pés; já uma das grandes favoritas, a Unidos da Tijuca, ganhadora do Estandarte de Ouro do Carnaval 2006 (promoção do Jornal O GLOBO) e que desfilou na madrugada da Terça-feira, 28, ficou com a sexta colocação este ano. Por pouco, a Acadêmicos do Grande Rio, que estourou o tempo e desfilou quase correndo, levava o campeonato. Conseguiu ser vice-campeã com gosto de campeã. Vai entender os critério de avaliação.

Como explicar que a Unidos da Tijuca que atingiu o mais elevado nível de excelência de acordo com os pontos — 29 notas 10 no total —, tenha ficado muito abaixo dos Acadêmicos do Grande Rio e da Unidos de Vila Isabel, aquela com 28 notas 10 e esta com 26? Um dos consensos entre público e crítica foram os carros da escola do carnavalesco Paulo Barros (Tijuca), que já em 2004 inventara as alegorias humanas com a impressionante “Criação da vida” representando a cadeia do DNA.

Este ano, carros como o do abre-alas (Resumo da Ópera), o da discoteca, com grupos de dublês dos ídolos (Elvis Presley, Michael Jackson e Tony Tornado) se revezando na pista, aparecendo e desaparecendo magicamente do palco, sem falar nas incríveis bicicletas voadoras do ET, seriam suficientes para consagrar Barros como o mais inventivo artista deste carnaval. Pois bem. No quesito “Alegorias e Adereços”, a escola do Morro do Borel obteve apenas uma nota 10. Li a entrevista de uma jurada criticando os ETs por serem bonecos e não “gente pulando” e alegando que nem todos os carros eram geniais. Será que as alegorias da Unidos de Vila Isabel (três 10) com o destaque do ícone genial Joãosinho Trinta e tudo; e dos Acadêmicos do Grande Rio (dois 10) foram todas geniais? Ou quase?

É fácil, porém, censurar os jurados por seus gostos e idiossincrasias, como se qualquer um de nós não estivesse sujeito a isso. Mas o problema vai além deles. Do mesmo modo que no Judiciário os juízes dependem do Código Penal, aqui o problema é o regulamento, que dá margem a uma série de distorções como, por exemplo, entregar a quatro jurados, não a todos, o item “conjunto”. Ou seja, o conjunto de uma escola de samba é decidido não pelo conjunto dos jurados, mas por alguns, assim como a evolução também (uma jurada disse que de onde estava não viu a correria dos integrantes dos Acadêmicos do Grande Rio). Conclusão: acaba-se julgando o todo pela parte.

Sei que já foram experimentados outros critérios, e abandonados por não terem dado certo. Vai ver que não existe nada melhor mesmo. Mas será que não é possível dar um pouco mais de objetividade a esse jogo de discrepância e disparate em que se transformou o julgamento dos desfiles das escolas de samba?

É, galera da ala “Ela & Elas” me esperem aí! acho que vou continuar desfilando gente!