Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quinta-feira, novembro 17, 2005

Encurralados

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE

A Oposição fez do ainda ministro de Estado da Fazenda, o médico Antonio Palocci Filho (PT-SP), sua bola da vez, mas nesta Quarta-feira, 16, mostrou que não se dispõe a ser responsabilizada por sua desestabilização. E o fez, sobretudo, ao apontar como problema central de Palocci Filho suas divergências com a ministra-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, a economista Dilma Rousseff (PT-RS), e a uma suposta indefinição do vosso presidente da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP) sobre o ajuste fiscal de longo prazo. Deixando de fazer perguntas sobre as denúncias que atingem o ministro da Fazenda, guardou uma bala no tambor para convocá-lo a depor em breve na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga as irregularidades nas loterias e casas de Bingos em andamento no Senado Federal (a famigerada CPI dos Bingos, ou como dizem os colegas maldosos: “A CPI do Fim do Mundo!”). O ataque continua, mas este primeiro round, Palocci conseguiu se manter de pé.

É claro que com suas críticas públicas Rousseff agravou a situação de um ministro já ferido por sucessivas denúncias de corrupção e improbidade administrativa, sob o risco de indiciamento. Mas foram elas, e não as críticas da colega, que o levaram a falar à Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado Federal. Antecipando o depoimento outrora marcado para o próximo dia 22, e tentando trocar a mesa da CPI dos Bingos pela mesa da CAE, Palocci evitou sangrar por mais uma semana e frustrou a Oposição. Os líderes do Partido da Frente Liberal (PFL) e do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) reagiram recusando-se a fazer perguntas sobre as denúncias que pesam com o ministro. Mas ao abordar apenas as questões econômicas, deixou que Palocci nadasse de braçada nas águas que domina. Quem viu em casa a transmissão ao vivo pelo Rádio e pela TV poderá se perguntar por que diabos a Oposição evitou falar das denúncias, tendo o próprio Palocci astutamente abordado todas elas na fala inicial. Negou categoricamente que tenha entrado dinheiro de Cuba, ou das Forças Revolucionárias da Colômbia (Farc) ou de Angola na campanha presidencial que coordenou em 2002, e que tenha havido caixinha eleitoral para o Partido dos Trabalhadores (PT) em sua gestão na Prefeitura de Ribeirão Preto (SP). “Eu não estou acima de qualquer suspeita”, disse ao tocar nas denúncias. E criticou, embora com habilidade, o comportamento das autoridades estaduais paulistas nos processos investigativos, “com interesses políticos muito claros”. Uma carapuça destinada, sobretudo ao secretário de Segurança Pública de São Paulo, Saulo de Abreu (PSDB-SP), embora não o tenha citado. Tudo deve ser investigado e noticiado mas os ritos jurídicos e os direitos individuais devem ser respeitados, insistiu.

Rebatendo golpes, foi também para o contra-ataque à colega Rousseff, dizendo que ela está errada na questão do ajuste de longo prazo. Esta mensagem foi para dentro do governo, para o PT e pode-se dizer, mesmo para o vosso presidente Luiz Inácio da Silva, já que alguns paloccistas suspeitam de que ele tenha pelo menos liberado a ministra da Casa Civil para ir ao duelo.

Ao senador Arthur Virgílio Neto (PSDB-AM), Palocci lançou com delicadeza um dardo flamejante, ao contestar suas declarações de que existem dois Palocci, o ministro da Fazenda e o que foi prefeito de Ribeirão Preto. Na prefeitura, disse ter tido bons auxiliares e ter se decepcionado com alguns. Os tais que o estão denunciando. Repetiu que não iria atacá-los por compreender o contexto em que fizeram suas declarações. Este já foi um dos poucos pontos criticados na entrevista coletiva lá atrás no meio da crise com que Palocci rebateu as primeiras denúncias, a indulgência com o advogado e ex-assessor Rogério Buratti, e agora com o economista e ex-assessor Vladimir Poleto também. Já no ministério, “não existe República de Ribeirão Preto”. Disse que não se cercou de companheiros, mas de pessoas indicadas pela competência e pela experiência. E deu uma lista na qual figuram técnicos de carreiras e alguns egressos do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Mais tarde Virgílio Neto diria que a atual equipe merece falar na CAE, mas que o lugar dos ribeirão-pretanos é na CPI dos Bingos mesmo, onde Palocci também poderá ter que comparecer, para falar do passado.

Uma cortesia do ministro que bem funcionou para agradar a aliados e neutralizar adversários foi o reconhecimento de que os avanços da gestão pública no Brasil vêm de outros governos, num processo de amadurecimento continuado. E aí sobraram reconhecimentos para José Ribamar Sarney (1985-90), Itamar Franco (1992-4) e Fernando Henrique Cardoso. Não para Fernando Collor de Mello (1990-2).

A convocação à CPI dos Bingos deve ser aprovada na próxima Terça-feira, 22, mas com data aberta para o comparecimento, para ser marcada quando convier à Oposição. Palocci admitiu comparecer, mas se isso acontecer, sua situação já deve ser outra. Nesta Quarta-feira, entrou no Senado Federal na defensiva, ouviu louvores e relaxou diante de uma Oposição que evitou dar-lhe golpes mortais. Inclusive porque, assim como prefere um Luiz Inácio da Silva ferido a um impeachment, parece preferir um Palocci fraco a outro ministro, forasteiro para o mercado. Mas este é outro jogo, que não depende só da política, mas também da própria economia.

Não existe a hipótese de Palocci sair, disse o vosso presidente Luiz Inácio da Silva num telefonema que trocou com o governador do Estado de Minas Gerais Aécio Neves da Cunha (PSDB-MG), ainda antes do início do depoimento do ministro da Fazenda na CAE do Senado Federal. Com o qual ficaria satisfeitíssimo ao final. A conversa com Aécio foi administrativa, mas, segundo o governador mineiro, falaram sobre a necessidade de desobstruir os canais políticos entre Governo e Oposição, hoje totalmente bloqueados pela crise.

Quanto a Palocci, Aécio adverte seus companheiros de Oposição para os riscos de sua desestabilização. “As denúncias precisam ser esclarecidas e o ministro dispôs-se ontem a colaborar, inclusive comparecendo à CPI. Agora, sou contra atacá-lo com rojões que podem ser fatais. Amanhã, se vier um ministro desastroso para a economia, seremos co-responsáveis. Lembremo-nos de que, pelo voto de alguns da oposição em Severino Cavalcanti, fomos depois acusados de ter garantido sua eleição”.

Quanto ao conflito Rousseff-Palocci, Luiz Inácio da Silva não vai desautorizá-la, mas deve agora dar demonstrações mais claras de apoio à posição do ministro da Fazenda.

Ao final, o “habilidoso” ministro Palocci teve uma vitória política em seu depoimento no Senado Federal, que foi também sua derrota. Defendeu a política econômica com firmeza, e contestou pela primeira vez em público as críticas que recebeu da ministra Dilma Rousseff. Porém, ao levar a discussão basicamente para o campo econômico, a Oposição manteve a possibilidade de convocá-lo para a CPI, o que ele pretendia evitar comparecendo espontaneamente à Comissão de Assuntos Econômicos.

É fato que Palocci gostaria de ter sido mais argüido sobre as acusações que pesam sobre ele e sua equipe na Prefeitura de Ribeirão Preto, para tentar encerrar a crise política, mas não conseguiu.
A liderança do PSDB no Congresso Nacional amanheceu na Quarta-feira, 16, com a disposição de tratar bem o ministro da Fazenda, que na noite anterior havia mantido contato com alguns líderes peessedebistas negociando um questionamento “não agressivo”. Ao contrário, a liderança do PFL amanheceu em Brasília (DF) pintado para a guerra, com a certeza de que o governo montara um golpe para evitar que Palocci seja convocado por uma CPI. A disposição inicial do PFL era de boicotar a sessão da CAE, mas não teve a solidariedade política do PSDB.

A estratégia de limitar as perguntas da Oposição a assuntos econômicos foi um meio-termo que os aliados encontraram e acabou dando certo, mas mostrou que está ficando cada vez mais difícil que PFL e PSDB tenham uma posição comum na campanha presidencial. A intensidade da oposição dos dois partidos está ficando gradativamente mais distante. A cada vez que o presidente Luiz Inácio da Silva se enfraquece diante da crise que o cerca, cresce a vontade dos líderes peefelistas de se colocar como o anti-PT diante do eleitorado nacional.

Talvez por essa decisão da Oposição, Palocci não tenha se dedicado tanto à sua defesa na fala inicial, abordando, de maneira genérica, àquelas acusações de que está sendo alvo. Caiu em contradição ao dizer que não teve participação na tesouraria da campanha presidencial de Luiz Inácio da Silva em 2002 para, em seguida, garantir que ela não recebeu dinheiro nem de Cuba, nem de Angola, nem das Farc.

Mais uma vez Palocci teve um cuidado excessivo quando se referiu a Buratti, seu principal acusador de ter recolhido dinheiro de caixa dois para o PT na sua gestão em Ribeirão Preto. E voltou a acusar o Ministério Público Estadual (MPE) e a Polícia Civil do Estado de São Paulo de estarem promovendo “uma devassa” em sua vida por questões políticas. Mas, ficou no ar a impressão de que Palocci teme atacar Buratti e por extensão Poleto.

Não tendo tido o apoio formal do vosso presidente Luiz Inácio da Silva, que, sem o citar, se auto-elogiara pela manhã dizendo que o País nunca passou por uma situação econômica tão exuberante, Palocci teve mais uma vez que enfrentar críticas de seu próprio partido (o já conhecido fogo amigo!), através do senador Eduardo Matarazzo Suplicy (PT-SP), e recebeu o apoio de parlamentares da Oposição, embora todos tenham ressaltado discordâncias com relação à intensidade ou o ritmo de certas medidas, como a redução da taxa de juros ou o nível do superávit primário.

Ao contrário de Luiz Inácio da Silva, o ministro da Fazenda fez questão de dividir os êxitos da política econômica com governos anteriores, de Sarney, com o fim da conta-movimento do Banco do Brasil, à Lei de Responsabilidade Fiscal do governo Fernando Henrique, e com isso lançou as bases para uma discussão ampliada, dentro do Congresso Nacional, de um projeto suprapartidário de esforço fiscal de longo prazo, exatamente o ponto em que foi alvejado pela ministra Rousseff.

Há uma velha briga no Brasil entre forças, grupos de interesse e idéias. Não é uma divisão maniqueísta entre pessoas; há personagens que trocam de lado em momentos diferentes. O ministro Palocci falou dessa briga que nos trouxe a um País de inflação anual de um dígito e sob uma Lei de Responsabilidade Fiscal. Ela continuará pelos anos seguintes. Foi essa disputa que opôs Palocci a Rousseff.

Palocci viu a estrada que a ministra não viu. Nessa estrada, o País tem caminhado da desordem fiscal e superinflação à situação atual. O País vai continuar sua caminhada e vai punir quem não conhecer sua lógica. Na Imprensa isso é definido como disputa entre monetaristas e desenvolvimentistas. É uma simplificação que nem de longe mostra o que realmente os divide. O único desenvolvimento possível é o que se faz sob as bases de uma moeda estável, e não há estabilidade possível se o governante pensa que “um pouquinho mais” de inflação é algo inofensivo, ou se pensa que “despesa corrente é vida”, como disse Rousseff. Seria como admitir “uma pequena gravidez” de uma criança de 11 anos. As despesas correntes precisam ser contidas, racionalizadas, focadas, para que haja desenvolvimento sustentável.

O ministro Palocci traçou uma linha que começou no fim da conta movimento do Banco do Brasil e a criação da Secretaria do Tesouro no governo Sarney, passou pelo Plano Real, no governo Itamar Franco, foi para o câmbio flutuante, sistema de metas de inflação e Lei de Responsabilidade Fiscal, no governo Fernando Henrique Cardoso. Nessa linha é que incluiu o esforço do governo Luiz Inácio da Silva (2003-6) de manter a estabilidade.

Ao traçar essa linha, ele contrariou profundamente o discurso marco zero do presidente Luiz Inácio da Silva, que sustenta que tudo no Brasil começou no seu governo. Poderia ter contrariado até mais. Seria justo pôr nessa lista de etapas da modernização do Brasil a abertura comercial e cambial do Brasil iniciada no governo Collor.

Não se trata de julgar os personagens, mas alguns dos seus atos. É como se a mão invisível do país, na busca de alguns objetivos, empurrasse os personagens para as decisões mais corretas. Palocci tem sido, na definição da política econômica, essa voz sensata. Seu destino, no entanto, está traçado. Dificilmente ele sobrevive à atual tempestade política por um detalhe: foi abandonado pelo chefe dele. Nesta mesma Quarta-feira, 16, o vosso presidente da República fez um discurso em que falou da economia sem tocar no tema que o fragilizou: o ataque da ministra Rousseff.

Em cada etapa dessa estrada de 20 anos, houve ferrenhas batalhas. A conta movimento do Banco do Brasil era boa para muita gente. Por ela, o Banco do Brasil (BB) podia gastar quanto fosse, podia ser ineficiente, podia emprestar sem garantias, distribuir crédito rural com subsídio e não se preocupar com a inadimplência crônica do setor, repassar quantias infinitas para seu fundo de pensão. Contra o fim da conta movimento se uniram os bancários do BB, os empresários que deviam ao banco, os produtores rurais que nunca pagavam seus créditos, o Conselho Monetário Nacional (CMN), que abrigava vários lobbies , e os parlamentares que representavam esses interesses. A decisão de acabar com aquela promiscuidade monetária foi o primeiro passo da construção do Brasil moderno.

Houve outras etapas. Em todas os defensores do suposto “desenvolvimentismo” pregaram contra o avanço. Nessas batalhas, o PT esteve do lado errado inúmeras vezes. Votou ou vociferou contra a maioria dessas etapas. Só para citar duas delas: o Plano de Estabilização Econômica e Monetária que introduziu o Real como nova moeda nacional em 1994 (governo Itamar Franco, tendo a frente o então ministro da Fazenda Fernando Henrique Cardoso) e a sanção da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) pelo e então presidente da República Fernando Henrique Cardoso.

Rousseff, quando defende a tese de que não é possível criar limites às despesas correntes porque não se sabe como será o futuro, repete o mesmo argumento usado à época pelos petistas e outros radicais contra a LRF. Ela também foi aprovada sem se saber quais seriam as pressões futuras, mas com a compreensão de que os gastos públicos precisam de parâmetros para não oscilar ao sabor da força dos lobbies.

Palocci viu essa estrada de lenta construção da estabilidade que a ministra-chefe da Casa Civil ainda não viu. Ela se deixa conquistar pelo discurso de gastar mais achando que isso levará a mais crescimento e à vitória nas eleições. Palocci segue os passos de quem entendeu que é preciso austeridade, controle dos gastos, inflação sob estrito controle para que se garanta o crescimento sustentado.

Em outro campo, o ministro Palocci se defendeu das denúncias de irregularidades em Ribeirão Preto. Essa é outra batalha. O ato na CAE não resolveu o assunto. Ele deu algumas pinceladas em sua defesa. Tem alguns bons argumentos. Um deles foi o de ter escolhido seus assessores diretos entre os quadros que a República do Brasil formou, mesmo sem conhecê-los. Outro foi que certos procedimentos do MP, dos processos de investigação, não têm respeitado o que determina o ritual democrático. Se excessos forem comprovados, o País precisa corrigi-los. Isso ameaça não uma pessoa, uma autoridade; ameaça o estado de direito, conquistado em outra longa caminhada do povo brasileiro.
O ministro Palocci falou para o país, olhou a estrada antes e depois dele e mostrou que sabe que duas batalhas estão misturadas. A batalha da investigação de irregularidades vai continuar, e certamente ele terá de voltar ao Congresso. A outra batalha, mesmo que ele caia, acabará vencendo. Se o governo Luiz Inácio da Silva ameaçar a estabilidade econômica, estará cavando seu próprio fim, e não restará se quer os efeitos positivos do Programa Bolsa Família.

Com as dificuldades que encontra dentro do governo e dentro do PT para manter sua política econômica, Palocci resolveu fazer do limão uma limonada e partiu para conseguir apoio político junto à Oposição. Quando se mostrou disposto a fazer elogios “rasgados” a seu antecessor, o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan (1995-2002), que classificou de um homem público da mais alta qualidade, estava entrando em choque com o presidente do PT, deputado Ricardo Berzoini (PT-SP), que fez uma crítica completamente sem sentido ao fato de Malan estar trabalhando em um banco, e está sendo processado por isso.

Sempre que teve oportunidade, Palocci enfatizou a necessidade de um projeto fiscal de longo prazo — chegou a falar em dez anos, mas se referiu aos “próximos três ou quatro governos”, o que daria até mais 16 anos — que parece ser um plano ambicioso e politicamente delicado em um ano eleitoral. O vosso presidente Luiz Inácio da Silva, embora tenha reafirmado em várias ocasiões ultimamente sua decisão de não mudar a política econômica, procurou não criticar a posição de Dilma Rousseff, que já tem se pronunciado em reuniões no Palácio do Planalto a favor de uma inflação um pouco maior, contra um superávit maior.

Palocci rebateu diretamente as críticas, afirmando que “não estamos enxugando gelo” — expressão usada por Rousseff. Voltou a garantir que, se aprovado um plano de longo prazo, os juros poderão cair mais rapidamente e a carga tributária ser reduzida. Ao contrário, se os gastos correntes do governo continuarem a crescer como acontece há dez anos, Palocci advertiu: a única solução será aumentar a carga tributária.

O fato relevante foi que Palocci pôde responder publicamente às críticas de colega sua à política econômica, e dar uma espécie de ultimato ao próprio presidente da República: fica no governo desde que seja para executar essa política econômica, e não outra. E exigiu coesão da equipe de governo. Mas, como também ficou evidente, Palocci já não é tão invulnerável. A crise política continua do mesmo tamanho que tinha antes do depoimento, e a Oposição agora ficou na obrigação de convocar o ministro da Fazenda para uma das CPIs que continuarão funcionando até o próximo ano.