Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, dezembro 13, 2009

Redenção à figura eqüestre do petismo

EXCLUINDO O “vale de lágrimas”, o filme “Lula, o Filho do Brasil” não passa de mais uma versão da fábula do indivíduo virtuoso que, arrostando a adversidade extrema, luta, persevera e triunfa montado apenas nos seus próprios esforços. Como cada um encontra aquilo que procura, o fiel extrai dessa fábula uma lição singela sobre a intervenção misteriosa da providência, enquanto o doutrinário liberal nela encontra o argumento clássico em defesa do princípio do mérito individual. Nenhuma das interpretações se amolda ao pensamento de esquerda, que se articula ao redor das noções de circunstância histórica e sujeito social. O filme “Lula, o Filho do Brasil” é uma narrativa avessa ao programa do Partido dos Trabalhadores (PT).
O “VALE de lágrimas” é vital. O livro homônimo descrito pela jornalista Denise Paraná, inspiração original do filme, apresenta Luiz Inácio da Silva (PT-SP) como personificação de um ator coletivo que é a classe trabalhadora. O filme dirigido e produzido por Fábio e Luiz Carlos Barreto – que custou o maior orçamento da história do cinema brasileiro -, rejeita a metáfora esquerdista, substituindo-a por outra, nacionalista. Lula é o Brasil do futuro, que emerge purificado do pântano do sofrimento - eis a mensagem de “Lula, o Filho do Brasil”. Colegas da Imprensa, bem mais brilhantes que eu, já escreveram, abundantemente, sobre as óbvias finalidades eleitorais da hagiografia produzida pela família Barreto. Porém, passou-se ao largo do seu sentido político profundo: o filme condena o PT à vassalagem.

NO PALÁCIO de Versalhes, uma imagem que simboliza a França abençoa o leito real de Luís XIV. As monarquias absolutas foram modernas no seu tempo, pois produziram um imaginário nacional. O maior dos soberanos Bourbon completou a tarefa de subordinação da nobreza ao poder central, suprimindo os privilégios políticos dos senhores e convertendo-os em cortesãos. Quando se curvavam diante do rei, os nobres domesticados estavam reverenciando a França. O filme “Lula, o Filho do Brasil”, funciona como instrumento de domesticação do PT, impondo a seus dirigentes e militantes a obrigação de se curvar diante de Luiz Inácio da Silva, seu fundador e líder “supremo”. Não há, porém, nada de moderno nisso.

NA REPÚBLICA, a nação subtrai a figura do soberano, cujo lugar passa a ser ocupado pelo povo. As tiranias republicanas, nas suas modalidades fascistas, comunistas ou caudilhistas, desviam-se patologicamente desse modelo despersonificado da nação. Elas têm um pendor irresistível a erguer estátuas de líderes vivos, que cumprem o papel de lugares de culto. O filme “Lula, o Filho do Brasil” é algo mais parecido com uma estátua eqüestre de Luiz Inácio da Silva que se pode produzir no Brasil do século XXI. Entretanto, como as instituições políticas da democracia estão de pé, o culto ao líder vivo não se espraia além de um círculo restrito formado essencialmente pelo partido que dele depende.

O PARTIDO dos Trabalhadores original viu-se a si mesmo como um projeto coletivo de transformação do Brasil. Luiz Inácio da Silva seria apenas uma face, relevante, mas circunstancial, da caminhada redentora do povo trabalhador. O livro de Denise Paraná inscreve-se nessa visão e, não por acaso, termina com a prisão do sindicalista Luiz Inácio da Silva em 1980: depois dela começaria uma outra história, que é a do PT. Na ala esquerda petista, enxergou-se Luiz Inácio da Silva como um inconveniente inevitável, mas passageiro, na senda da revolução socialista. No outro extremo do partido, num passado não tão distante, dirigentes como o deputado José Genoino (PT-SP) e Antonio Palocci Filho (PT-SP) procuraram alternativas mais "presidenciais" à figura rombuda do sindicalista do “ABCD Paulista”. Todos eles fracassaram, nos planos prático e simbólico. O filme produzido pela família Barreto salta diretamente da prisão de Luiz Inácio d Silva para a festa da posse na Presidência da República do Brasil (2003), colocando entre parêntesis a história inteira do PT. O filme chegará ao grande público no final do primeiro semestre de 2010, juntamente com a homologação da candidatura Dilma Pinóquio Rousseff (PT-RS), ungida pelo vosso presidente da República, Luiz Inácio da Silva, na base do dedazo, nome que os mexicanos deram à indicação presidencial dos sucessores nos tempos da hegemonia do Partido Revolucionário Institucional (PRI).

NO MUNDO real, o "filho do Brasil" nutriu desprezo completo pelos partidos e correntes de esquerda, algo bem documentado em depoimentos e entrevistas. Outro dia, indignado com a mistificação cinematográfica elaborada pela família Barreto, o economista e professor da Universidade de São Paulo (USP), César Benjamim, um dos fundadores do PT, relatou em artigo publicado pelo Jornal Folha de S. Paulo, que Luiz Inácio da Silva se gabou durante a campanha presidencial de 1994 de ter tentado currar um "menino do MEP", preso político com quem dividiu uma cela no antigo Deops (um dos temidos aparelhos de repressão do regime militar em São Paulo). O filme é uma curra consumada: a violação da narrativa canônica do PT e sua substituição por uma história de cartolina na qual a redenção se identifica com a trajetória do líder providencial.

ESSE filme “Lula, o Filho do Brasil” tem todos os traços de cinema oficial. A obra foi financiada por empresas com vultosos contratos públicos e sua versão final acolheu sugestões provenientes do entourage presidencial. É um mau filme, mesmo se analisado nos seus próprios termos.

O FILME produzido pela família Barreto não provoca uma empatia firme nem desata turbilhões emocionais. Dificilmente terá impacto eleitoral significativo em 2010. Mas, antes ainda da estreia formal, cumpre a função mais sutil de domesticação simbólica dos petistas.

OUTRO desapontamento: ver a mais brilhante atriz brasileira de sua geração – a nossa Glorinha Pires (TV GLOBO) – emprestar o seu talento inconteste à essa parábola redentora reinventada por Luiz Carlos Barreto e cia.

NA VELHA corte de Luís XIV, um sistema sofisticado de regras de precedência e de etiqueta regulava as relações entre o soberano e os nobres cortesãos. No seu conjunto, aquelas regras tinham a finalidade de atestar continuamente a fidelidade à figura real, que personificava a França. A primeira pré-estreia do filme “Lula, o Filho do Brasil”, destinada a ministros, diretores de fundos previdenciários de empresas pública e estatais e altos dirigentes do petismo, obedeceu a um improvisado sistema similar. Programam-se sessões especiais para intelectuais, artistas, sindicalistas e militantes, já convocados a "prestigiar" o filme. Todos, cada um a seu momento, devem fazer a genuflexão diante da nova ordem da história.

O FINADO ex-ministro-chefe do Gabinete Civil da Presidência da República, general Golbery do Couto e Silva, o "mago" da Ditadura Militar (1984-1985) e da abertura política (1982-85), profetizou certa vez que o, então, operário e líder sindical, Luiz Inácio da Silva, cumpriria a missão histórica de destruir a esquerda no Brasil. Se vivo, e Couto e Silva daria um jeito de assistir escondido ao espetáculo proporcionado pelo público de uma dessas pré-estreias voltadas para a corte do petismo.