Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, julho 24, 2006

Fúria bipolar

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
CAMPOS DO JORDÃO (SP)


Ao longo da História sempre nos pareceu fácil e prazeroso aplaudir Israel nos bons tempos em que a nação dos kibutzim dava ao mundo lições de como levar água, agricultura e democracia ao que parecera durante séculos ser um deserto irrecuperável. Era impossível não torcer pelos sobreviventes do massacre nazista e pelos sabras, por exemplo, quando enfrentavam e derrotavam tanques de invasores egípcios.

Hoje não é mais assim. Quando brasileiros enfrentam o pânico e a morte no Líbano — um país que mandou muitos de seus filhos para o Brasil — fica complicado não ver daqui com tristeza e indignação a reação do governo israelense ao seqüestro de dois militares (dois!) pelo Hezbollah, grupo terrorista que tem seu quartel-general em solo libanês.

Complacência ou cumplicidade do governo local com os seqüestradores justificariam protestos e retaliações de diversos tipos — mas nunca a morte de inocentes (já são mais de 500 vítimas até onde a Imprensa pôde apurar).

Em outras épocas, líderes como Ben Gurion, Golda Meir e Moshe Dayan tinham o respeito do mundo. Construíram uma nação quase do nada e a defenderam com coragem, energia e, sobretudo, inteligência. Talvez tenha sido a experiência socialista mais bem-sucedida da História da Humanidade. Nenhuma das antigas virtudes é aparente no atual governo israelense.

Não é preciso qualquer simpatia pelos terroristas do Hezbollah, nem pelos desígnios que a Síria possa ter em relação ao Líbano, para se constatar que o governo de Israel abre mão de ter razão quando bombardeia maciçamente áreas urbanas. É uma forma de ataque particularmente cruel e covarde. Disparadas à distância, bombas não escolhem vítimas: indiferentemente, podem acertar colégio, asilos, hospitais ou bases terroristas.

E a onda de destruição vem em momento cruel: o Líbano começava a recuperar, depois dos anos de ocupação síria, a imagem dos bons tempos em que Beirute era chamada de “Paris do Oriente” até pelos cidadãos norte-americanos.

O Hezbollah, para usar o termo técnico empregado pelo ex-presidente e progenitor do atual presidente norte-americano, George Bush, provavelmente só faz merda — mas que palavras devem ser usadas para definir o que está fazendo o governo israelense?

Diz-se que o bombardeio do Líbano não visa apenas a forçar os terroristas a devolver os dois soldados. Teria também (talvez principalmente) o objetivo estratégico de impedir uma nova ocupação do país pela Síria.

Pode ser, pode até dar certo, mas a violência cega das chuvas de bombas tem preço alto demais para Israel: seu governo se desmoraliza ante a opinião pública mundial.

Verdade seja dita: iniciou-se há muito, a III Guerra, e não foi nesses dias, com o acirramento da crise no Oriente Médio. Tudo começou num momento indeterminado entre o fim dos anos 1990 e o início deste Século XXI da graça de Oxalá!

Não é uma guerra claramente declarada e não se limita aos conflitos convencionais entre as nações. É uma guerra que transcende as nações, que se trava sem cessar nas cidades, nos subúrbios, nos campos, nas estradas, nos mares, céus, e também nos universos paralelos que, em nossa simbiose com as inteligências digitais, percorremos dia e noite, e enquanto dormimos, em nossos computadores. Não é uma guerra só entre exércitos, ou guerrilhas, ou grupos radicais. É uma guerra de todos contra todos. É a guerra multifacetada do narcotráfico e demais máfias ilegais contra os poderes constituídos e máfias oficiais, pior à medida que ambos se entrelaçam, produzindo filhotes monstruosos (mensaleiros, valérios, delúbios, nestores, sanguessugas, lobistas, pelegos...).

Esta é, também, a guerra das grandes corporações contra o Estado. É a guerra do Estado para brecar o avanço indiscriminado e tantas vezes imoral das corporações. Ou, ao contrário, a guerra do Estado contra a sociedade, para manter antigos e promíscuos laços entre as corporações e os governos populistas.

É a guerra dos imigrantes e dos filhos e netos dos imigrantes para receber os atrasados pela folha corrida de serviços prestados aos impérios colonialistas. É a guerra dos escravos que nunca foram libertados de fato, eternizando seu sofrimento em bolsões de miséria herdada.

Tudo em nome da Globalização (como se esta fosse um fenômeno unívoco), pelo fim de todo regime de bem-estar social, pela erosão galopante de toda e qualquer conquista, ainda que residual, das sociais-democracias.

Ainda é a guerra pelo fim do emprego, que é também uma forma de extermínio lento e progressivo dos excessos contingenciais e indesejáveis, do clamor de tanta boca para comer, dos sonhos de tanto espírito para viver condignamente. É a guerra desregulada pelos mercados voláteis. É a guerra dos mercados desregulados contra a realidade dos mercados constituídos.

É também a guerra pela informação transformada em commodity. A guerra pela aglutinação do conteúdo em gadgets mínimos, e pelo direito de censurá-los de acordo com a demanda dos países (ou dos grupos, ou das empresas, ou dos indivíduos), ou de acordo com o perfil do cliente: é o novo google on demand , feito sob medida para a sua ditadura, caro cliente.

A guerra da negação do passado. Da negação da História. Do marketing definitivo, final. Do triunfo da burrice individual e coletiva.

Uma guerra das franquias de terrorismo: “escolha o metrô que você quer explodir, o laboratório que você quer empastelar, e deixaremos você morrer em nome de uma causa”.

Esta é, ainda, a guerra do fanatismo religioso contra o livre-pensar. A guerra dos religiosos moderados contra os religiosos radicais. É a guerra de ditaduras religiosas contra o radicalismo endêmico, ou, conforme o caso, o uso desse radicalismo como massa de manobra. Tem sido, ainda, a guerra da máquina de guerra contra a máquina de paz.

É a guerra das potências atômicas contra os emergentes atômicos desalinhados. É a aliança diabólica entre terrorismo de estado e superterrorismo periférico. É uma guerra feita de múltiplas guerras velhas e novas, renovadas, genéricas. Que resulta de todas as guerras, e resultará nas que virão.
E sobretudo e contra todos, esta é a última e é a mais antiga das Guerras. É a própria História. É a guerra crônica. O câncer mundial sob controle. O herpes na genitália da “mãe” Terra. A essência humana, desesperada, bipolar.