Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

terça-feira, maio 08, 2012

Liturgia da cassação


RIO DE JANEIRO (RJ) - O "DOUTOR", que o seu bom amigo "professor" ambicionava até vê-lo um dia de toga, como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), foi levado a descer aos infernos de seu ofício, a uma distância intransponível das alturas que se imaginava capaz de escalar. "Doutor" era o tratamento que o senador Demóstenes Torres (sem partido-GO) recebia do contraventor Carlinhos Cachoeira, a quem se dirigia como "professor" em algumas passagens dos 298 telefonemas trocados entre eles de Fevereiro a Agosto de 2011 e interceptados pelo Departamento de Polícia Federal (DPF).

NA última Quinta-feira, 03, iniciando uma partida a uma sequência de procedimentos que em pouco mais de 60 dias devem culminar com a cassação de Demóstenes, o senador Humberto Costa (PT-PE), relator do pedido de ação disciplinar apresentado pelo Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL) no Conselho de Ética do Senado Federal, aprovou a abertura do processo por quebra do decoro contra o parlamentar que há um mês se desfiliou do Democratas (DEM) para não ser expulso do partido. Até hoje o Senado Federal cassou um único dos seus – então, representante do Distrito Federal (DF), o empreiteiro Luiz Estevão (PMDB-DF), punido em 2000 pelo desvio de R$ 169 milhões da obra da sede da Justiça do Trabalho em São Paulo.

DEPOIS de sete anos, aquela Casa do Poder Legislativo, preservou o mandato do senador Renan Calheiros (PMDB-AL), embora tivesse sido provado que uma empreiteira pagava por ele uma pensão alimentícia. Nem os dois nem quaisquer de seus pares que, antes do advento da Lei da Ficha Limpa (LFL), puderam conservar os direitos políticos renunciando ao mandato para não serem cassados, como o finado senador baiano Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) e o então senador paraense Jader Barbalho (PMDB-PA), tinham, no entanto, um perfil que se parecesse, ainda que remotamente, com a imagem imaculada que o procurador da Justiça e ex-secretário de Segurança Pública do Estado de Goiás soube confeccionar para si nos seus dois mandatos de senador da República.

POR mais que os políticos tivessem habituado o público a esperar revelações desabonadoras a seu respeito, ao cair a máscara de Demóstenes a sensação de todos quantos aplaudiam as suas cobranças pela moralização do governo federal foi a de terem sido lesados.

NO vértice do triângulo goiano formado por Cachoeira, membros da equipe do governador do Estado de Goiás, Marconi Perillo (PSDB-GO),se não ele próprio, e o diretor regional da construtora Delta, Cláudio Abreu (com a anuência, ou não, do dono da empreiteira, Fernando Cavendish), Demóstenes rotineiramente traficava influência nos Três Poderes da República em favor do contraventor goiano e da empreiteira da qual é acusado de ser "sócio oculto" pelo procurador-geral da República, Roberto Gurgel.

ALÉM de presentes úteis (uma cozinha, um rádio-celular antigrampo) ou desfrutáveis (um lote de cinco garrafas do vinho "Cheval Blanc" 1947, por cerca de US$ 2,8 mil a unidade), ele recebeu de Cachoeira, segundo o Ministério Público, R$ 3,1 milhões. No Conselho de Ética do Senado da República, o relator Humberto Costa guardou-se, porém, de citar as gravações do DPF que serviram de base para Gurgel pedir ao Supremo Tribunal Federal (STF) que investigasse o senador. Fez bem. A defesa de Demóstenes quer que a Corte declare nulas as escutas, porque elas teriam infringido o seu direito ao foro privilegiado - a iniciativa teria de partir do Tribunal. Se este acolher a ação, o processo no Senado Federal poderia perder o fundamento.

EM vez disso, Costa invocou palavras e atos de Demóstenes para sustentar a tese de que, em discurso no último dia 06 de Março, ele mentiu ao se dizer contrário à legalização do jogo de azar no País e ao afirmar que mantinha apenas "relações sociais" com Cachoeira, desconhecendo as suas atividades de "contravenção". Em 2003, defendeu da tribuna a legalização da tavolagem. E pelo menos desde a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Bingos no Senado Federal, em 2006, o ilícito ganha-pão de Cachoeira ficou caracterizado. As comprovadas inverdades de Demóstenes configuram atentado ao decoro; o mesmo vale para a obtenção de "vantagem indevida". Uma coisa e outra são passíveis de cassação de mandato e perda de direitos políticos por 15 anos.

PARA que o plenário do Senado Federal se sinta encorajado a endossar a provável decisão do Conselho de Ética nesse sentido, é de desejar também que antes do dia D entre na pauta daquela Casa e seja aprovado o projeto que acaba com o voto secreto em casos de cassação. A proposta dorme há dois anos.