Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, setembro 28, 2009

O incêndio da intolerância

O PRESIDENTE da República dos Estados unidos da América (EUA), Barack Houssein Obama, outro dia, recusou-se na a responder à pergunta de um repórter sobre o que pensava da afirmação do ex-presidente da República Norte-americana, Jimmy Carter, de que "grande parte da animosidade em relação ao presidente Obama se deve ao fato de ele ser negro".

CARTER, que nasceu no Estado sulista da Geórgia e ocupou a Casa Branca de 1977 a 1981, falava da onda de furiosos ataques de que Barack Obama tem sido alvo, na mídia conservadora radical, em assembleias comunitárias e numa passeata que reuniu há duas semanas perto de 80 mil pessoas em Washington (DC).

A RAZÃO, ou o pretexto, é o seu principal projeto de governo, a reforma do sistema norte-americano de saúde. O ódio chegou a tal ponto que, ao defender a sua proposta no Congresso Nacional Norte-americano, há 15 dias - em um discurso desde logo considerado por observadores independentes como "um dos momentos definidores de sua presidência" -, Barack Obama teve de fingir que não ouviu o grito do deputado republicano Joe Wilson, pelo Estado da Carolina do Sul: "Você mente!" O deputado se desculpou em seguida, a grosseria foi repudiada em plenário pelo voto da ampla maioria democrata na Câmara dos Representantes, mas o incêndio se alastrou.

DE UM lado - e sintomaticamente -, Wilson se tornou da noite para o dia o mais novo herói da direita norte-americana. De outro, o inédito episódio levou o ex-presidente Carter a dizer que "o racismo voltou a emergir porque muitos brancos acham que um afro-americano não está qualificado para liderar a nação". Antes dele, a ferina colunista Maureen Dowd, do New York Times Journal, escreveu em artigo que Wilson quis dizer "você mente, rapaz". Rapaz, no caso, era como os racistas brancos se dirigiam, entre o desprezo e a condescendência, aos negros de qualquer idade.

O SILÊNCIO de Barack Obama é compreensível. Primeiro, é coerente com a posição que adotou desde o início da campanha de se considerar um candidato "pós-racial" - de fato, nem antes nem depois de enveredar pela política ele se vinculou ao movimento negro, muito menos fez da cor um passaporte. Decerto por uma mistura de cálculo eleitoral e convicção íntima, procurou ser visto como um presidente que por acaso é negro em vez de eventual primeiro presidente negro de seu país. Em segundo lugar, tudo o que ele não precisa, a esta altura, é contaminar o seu combalido plano de reforma da saúde, que sofre uma barragem de críticas, com um debate sobre o fator racial. Isso seria no mínimo contraproducente para a superação das resistências à proposta no próprio Partido Democrata. Objetivamente, além disso, tem parcela de razão o ex-secretário de Estado, Colin Powell, também negro, quando diz que a hostilidade a Obama se deve muito à beligerante cultura política norte-americana, amplificada pelas vozes extremistas na internet, TV a cabo e talk-shows no rádio.

É VERSDADE ainda que o presidente Bill Clinton e a sua mulher Hillary Clinton - que conduziu a montagem do que viria a ser um fracassado programa de saúde, há 16 anos - foram vítimas do que ela descreveu, à época, como "uma vasta conspiração direitista". Mas, nos ataques a Barack Obama, é inegável que o preconceito racial se soma à oposição ideológica de muitos americanos ao que entendem ser um "projeto socialista" que expandiria o poder do Estado na esfera das decisões privadas sobre o que no limite seria, literalmente, uma questão de vida ou morte.

A ELEIÇÃO de Obama não transformou os EUA numa nação homogênea. A crise econômica que rebentou na reta final da campanha prevaleceu sobre o racismo, mas não o suprimiu da vida americana. Contra o candidato se fabricou a acusação de ser ele um muçulmano enrustido. Contra o presidente, a calúnia de que teria nascido no Quênia e falsificado os registros para se tornar elegível. Blogueiros hidrófobos, radialistas incendiários e "Os cabeças falantes" do canal Fox News colocam na ordem do dia as piores criações da margem lunática da sociedade norte-americana.

POR FIM, Obama recebe, em média, 30 ameaças de morte por dia - quase quatro vezes mais do que George W. Bush recebia. "O problema é ele ser afro-americano", diz o escritor Ronald Kessler, que entrevistou mais de cem agentes do serviço secreto. "Supremacistas brancos não o toleram na Casa Branca".