Incógnita transformação
JÁ SE tornou uma platitude dizer que os protestos de rua dos últimos dias em Teerã são as mais contundentes manifestações espontâneas ocorridas no Irã desde o formidável movimento que há 30 anos uniu a nação milenar contra o sistema monárquico e abriu caminho para a instauração da República Islâmica, sob a inspiração do implacável aiatolá Ruhollah Khomeini. No entanto, os acontecimentos desencadeados pelo que tudo indica ter sido a fraude em larga escala com a qual a teocracia tratou de assegurar a reeleição do presidente Mahmoud Ahmadinejad, seu fiel servidor, vão além disso. Constituem a mais fascinante expressão de descontentamento maciço com a sonegação dos princípios fundamentais da democracia e das liberdades políticas já vista no mundo desde a revolta popular que há 20 anos pôs abaixo o Muro de Berlim e, na sequência, soterrou o comunismo no Leste Europeu.
NÃO SE quer dizer com isso que a história está fadada a se repetir no Oriente Médio, embora seja significativo que, logo na primeira hora das passeatas, autoridades iranianas tenham advertido que não haverá lugar para uma "revolução de veludo", como os levantes em geral pacíficos que alforriaram os então Estados-satélites da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O desenrolar do que poderá ser, ou não, a crise terminal do regime dos turbantes é evidentemente uma incógnita. O essencial a ressaltar, de todo modo, é a singularidade do confronto no primeiro país muçulmano a adotar na era contemporânea a primazia dos mandamentos corânicos - e numa interpretação integrista - sobre as leis e as instituições nacionais. A face literalmente mais notável daquilo que distingue esse conflito é a irrupção, como arma de combate político, do que a tecnologia das comunicações tem de mais moderno e acessível a milhões de pessoas.
PORÉM, não se trata apenas, o que já não seria pouco, do uso em si da internet, especialmente por meio de telefones celulares, para o registro e o envio de imagens e textos que em instantes percorrem o globo, tornando patéticas as tentativas governamentais de cercear a difusão da verdade dos fatos nas ruas iranianas - a magnitude dos protestos e a sua sangrenta repressão. A utilização sem precedentes de tais facilidades, além de compensar em certa medida os efeitos do banimento dos correspondentes estrangeiros no país, introduz um dado novo na equação política iraniana e na resposta da comunidade internacional aos eventos em curso. Isso conta: apesar do seu fanatismo e da sua clamorosa hostilidade ao Ocidente, não está nos planos dos aiatolás segregar o Irã do mundo, como uma segunda Coreia do Norte. (Sem falar no aspecto do que os manifestantes iranianos ensinam com suas mensagens instantâneas a outras sociedades oprimidas.)
UMA OUTRA peculiaridade da crise vem de suas origens. A eleição fraudada não foi uma competição entre um adepto e um inimigo do sistema. O oposicionista Mir Hossein Mousavi não se apresentou como um contestador da autocracia, mas como um duro crítico do desastroso governo Ahmadinejad.
MOUSAVI tampouco é um outsider: antigo primeiro-ministro, foi apoiado por setores clericais cautelosamente reformistas, a começar do aiatolá e ex-presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani, com ascendência sobre a chamada Assembleia dos Especialistas. Esse colegiado de 86 religiosos escolhe e supervisiona o líder supremo a quem respondem todos os titulares do aparelho estatal - no caso, o aiatolá Ali Khamenei. Ele não só respaldou o seu seguidor Ahmadinejad, como declarou "definitiva" a sua vitória e deu a senha para a repressão ao responsabilizar Mousavi pelo "derramamento de sangue e caos" que viessem a acontecer.
DO EMARANHADO de nexos do estabelecimento religioso com as instituições civis resultam as tensões provavelmente insolúveis que antepõem a lei islâmica absolutista, que deve prevalecer sobre a esfera política, à democracia prometida pela revolução de 1979 - em nome da fé. Essas tensões finalmente explodiram, sob o impulso de uma nova geração para a qual o Islã não tem todas as respostas que as suas aspirações demandam. Uma nova página na história do Irã começou a ser escrita. Terminará ou na tragédia do endurecimento do regime ou em avanço democrático.
EM QUALQUER das hipóteses, a República Islâmica e a sociedade iraniana já não serão as mesmas.
NÃO SE quer dizer com isso que a história está fadada a se repetir no Oriente Médio, embora seja significativo que, logo na primeira hora das passeatas, autoridades iranianas tenham advertido que não haverá lugar para uma "revolução de veludo", como os levantes em geral pacíficos que alforriaram os então Estados-satélites da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). O desenrolar do que poderá ser, ou não, a crise terminal do regime dos turbantes é evidentemente uma incógnita. O essencial a ressaltar, de todo modo, é a singularidade do confronto no primeiro país muçulmano a adotar na era contemporânea a primazia dos mandamentos corânicos - e numa interpretação integrista - sobre as leis e as instituições nacionais. A face literalmente mais notável daquilo que distingue esse conflito é a irrupção, como arma de combate político, do que a tecnologia das comunicações tem de mais moderno e acessível a milhões de pessoas.
PORÉM, não se trata apenas, o que já não seria pouco, do uso em si da internet, especialmente por meio de telefones celulares, para o registro e o envio de imagens e textos que em instantes percorrem o globo, tornando patéticas as tentativas governamentais de cercear a difusão da verdade dos fatos nas ruas iranianas - a magnitude dos protestos e a sua sangrenta repressão. A utilização sem precedentes de tais facilidades, além de compensar em certa medida os efeitos do banimento dos correspondentes estrangeiros no país, introduz um dado novo na equação política iraniana e na resposta da comunidade internacional aos eventos em curso. Isso conta: apesar do seu fanatismo e da sua clamorosa hostilidade ao Ocidente, não está nos planos dos aiatolás segregar o Irã do mundo, como uma segunda Coreia do Norte. (Sem falar no aspecto do que os manifestantes iranianos ensinam com suas mensagens instantâneas a outras sociedades oprimidas.)
UMA OUTRA peculiaridade da crise vem de suas origens. A eleição fraudada não foi uma competição entre um adepto e um inimigo do sistema. O oposicionista Mir Hossein Mousavi não se apresentou como um contestador da autocracia, mas como um duro crítico do desastroso governo Ahmadinejad.
MOUSAVI tampouco é um outsider: antigo primeiro-ministro, foi apoiado por setores clericais cautelosamente reformistas, a começar do aiatolá e ex-presidente Ali Akbar Hashemi Rafsanjani, com ascendência sobre a chamada Assembleia dos Especialistas. Esse colegiado de 86 religiosos escolhe e supervisiona o líder supremo a quem respondem todos os titulares do aparelho estatal - no caso, o aiatolá Ali Khamenei. Ele não só respaldou o seu seguidor Ahmadinejad, como declarou "definitiva" a sua vitória e deu a senha para a repressão ao responsabilizar Mousavi pelo "derramamento de sangue e caos" que viessem a acontecer.
DO EMARANHADO de nexos do estabelecimento religioso com as instituições civis resultam as tensões provavelmente insolúveis que antepõem a lei islâmica absolutista, que deve prevalecer sobre a esfera política, à democracia prometida pela revolução de 1979 - em nome da fé. Essas tensões finalmente explodiram, sob o impulso de uma nova geração para a qual o Islã não tem todas as respostas que as suas aspirações demandam. Uma nova página na história do Irã começou a ser escrita. Terminará ou na tragédia do endurecimento do regime ou em avanço democrático.
EM QUALQUER das hipóteses, a República Islâmica e a sociedade iraniana já não serão as mesmas.
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