Liturgia da cassação
RIO
DE JANEIRO (RJ) - O "DOUTOR", que o seu bom amigo "professor" ambicionava até vê-lo um
dia de toga, como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), foi levado a
descer aos infernos de seu ofício, a uma distância intransponível das alturas
que se imaginava capaz de escalar. "Doutor"
era o tratamento que o senador Demóstenes Torres (sem partido-GO) recebia do contraventor
Carlinhos Cachoeira, a quem se dirigia como "professor" em algumas passagens dos 298 telefonemas trocados
entre eles de Fevereiro a Agosto de 2011 e interceptados pelo Departamento de
Polícia Federal (DPF).
NA
última Quinta-feira, 03, iniciando uma partida a uma sequência de procedimentos
que em pouco mais de 60 dias devem culminar com a cassação de Demóstenes, o
senador Humberto Costa (PT-PE), relator do pedido de ação disciplinar
apresentado pelo Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL) no Conselho de
Ética do Senado Federal, aprovou a abertura do processo por quebra do decoro
contra o parlamentar que há um mês se desfiliou do Democratas (DEM) para não
ser expulso do partido. Até hoje o Senado Federal cassou um único dos seus – então,
representante do Distrito Federal (DF), o empreiteiro Luiz Estevão (PMDB-DF),
punido em 2000 pelo desvio de R$ 169 milhões da obra da sede da Justiça do
Trabalho em São Paulo.
DEPOIS
de sete anos, aquela Casa do Poder Legislativo, preservou o mandato do senador
Renan Calheiros (PMDB-AL), embora tivesse sido provado que uma empreiteira
pagava por ele uma pensão alimentícia. Nem os dois nem quaisquer de seus pares
que, antes do advento da Lei da Ficha Limpa (LFL), puderam conservar os
direitos políticos renunciando ao mandato para não serem cassados, como o finado
senador baiano Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) e o então senador paraense
Jader Barbalho (PMDB-PA), tinham, no entanto, um perfil que se parecesse, ainda
que remotamente, com a imagem imaculada que o procurador da Justiça e
ex-secretário de Segurança Pública do Estado de Goiás soube confeccionar para
si nos seus dois mandatos de senador da República.
POR
mais que os políticos tivessem habituado o público a esperar revelações
desabonadoras a seu respeito, ao cair a máscara de Demóstenes a sensação de
todos quantos aplaudiam as suas cobranças pela moralização do governo federal
foi a de terem sido lesados.
NO
vértice do triângulo goiano formado por Cachoeira, membros da equipe do
governador do Estado de Goiás, Marconi Perillo (PSDB-GO),se não ele próprio, e
o diretor regional da construtora Delta, Cláudio Abreu (com a anuência, ou não,
do dono da empreiteira, Fernando Cavendish), Demóstenes rotineiramente
traficava influência nos Três Poderes da República em favor do contraventor
goiano e da empreiteira da qual é acusado de ser "sócio oculto" pelo procurador-geral da República, Roberto
Gurgel.
ALÉM
de presentes úteis (uma cozinha, um rádio-celular antigrampo) ou desfrutáveis
(um lote de cinco garrafas do vinho "Cheval
Blanc" 1947, por cerca de US$ 2,8 mil a unidade), ele recebeu de
Cachoeira, segundo o Ministério Público, R$ 3,1 milhões. No Conselho de Ética
do Senado da República, o relator Humberto Costa guardou-se, porém, de citar as
gravações do DPF que serviram de base para Gurgel pedir ao Supremo Tribunal
Federal (STF) que investigasse o senador. Fez bem. A defesa de Demóstenes quer
que a Corte declare nulas as escutas, porque elas teriam infringido o seu
direito ao foro privilegiado - a iniciativa teria de partir do Tribunal. Se
este acolher a ação, o processo no Senado Federal poderia perder o fundamento.
EM
vez disso, Costa invocou palavras e atos de Demóstenes para sustentar a tese de
que, em discurso no último dia 06 de Março, ele mentiu ao se dizer contrário à
legalização do jogo de azar no País e ao afirmar que mantinha apenas "relações sociais" com Cachoeira,
desconhecendo as suas atividades de "contravenção".
Em 2003, defendeu da tribuna a legalização da tavolagem. E pelo menos desde a Comissão
Parlamentar de Inquérito (CPI) dos Bingos no Senado Federal, em 2006, o ilícito
ganha-pão de Cachoeira ficou caracterizado. As comprovadas inverdades de
Demóstenes configuram atentado ao decoro; o mesmo vale para a obtenção de
"vantagem indevida". Uma
coisa e outra são passíveis de cassação de mandato e perda de direitos
políticos por 15 anos.
PARA
que o plenário do Senado Federal se sinta encorajado a endossar a provável
decisão do Conselho de Ética nesse sentido, é de desejar também que antes do
dia D entre na pauta daquela Casa e seja aprovado o projeto que acaba com o
voto secreto em casos de cassação. A proposta dorme há dois anos.
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