A fabulação de Cristina
SÓ
faltou a presidente da República da Argentina, Cristina Kirchner, assomar aos
balcões da Casa Rosada, a sede do governo nacional no coração de Buenos Aires,
diante de uma multidão adrede arregimentada em estado de apoteose cívica, para
completar o regressivo espetáculo de exaltação nacionalista do anúncio da
reestatização da YPF, a maior empresa petrolífera do país, desestatizada em
1993 e adquirida pela Repsol - companhia espanhola em 1999. Tudo o mais, porém,
seguiu o mofado figurino do auge da era peronista, nos anos 1950. Por volta do
meio-dia daquela Segunda-feira, 16, no salão nobre do palácio do governo, tendo
às costas uma imagem de Evita Perón e à frente uma siderada plateia de
militantes justicialistas, entoando cânticos e palavras de ordem dos viejos
tiempos, a presidenta, como exige ser chamada, proclamou a recuperação da
"soberania petrolífera"
argentina. Desnecessário dizer que o show de arrebatamento patriótico e
fabulação econômica foi transmitido em rede nacional.
NATURALMENTE,
ninguém teria a insolência de lembrar que a então senadora Cristina Kirchner,
bem como o seu marido Néstor Kirchner, à época governador da província
patagônia de Santa Cruz, aplaudiram a desestatização da YPF promovida pelo
então presidente Carlos Menem, o correligionário peronista que guinou para o
neoliberalismo sem jamais perder o ardor populista. A esta altura, de todo
modo, há paradoxos mais importantes a ressaltar. O principal é o que separa a
demagógica celebração da reconquista da soberania argentina no setor de
petróleo do estado crítico das finanças nacionais. Desde o calote da dívida em
2001, aquele país perdeu a confiança dos mercados internacionais de capital. Os
descalabros da política econômica kirchnerista, entre os quais avulta uma
indisfarçável inflação da ordem de 25%, obrigaram o governo a decretar em Outubro
passado o controle do câmbio - engessando, em consequência, as importações. Só
naquele mês fugiram do país US$ 3,4 bilhões. No ano, já deixaram o país US$
22,5 bilhões.
O
TESOURO nacional argentino não tem a mais remota condição de bancar os
investimentos que a Repsol é acusada de ter deixado de fazer para devolver ao
país a autossuficiência no setor energético - o argumento invocado por Cristina
para justificar a nacionalização da YPF, que passará a ser controlada pelo
governo federal, com 26,01% das ações, e pelas províncias produtoras de
hidrocarbonetos, com 24,99%. Dos 51% que detinha, restarão à Repsol 6,43%. Ora,
ela deixou de investir na proporção desejada pelo governo porque o próprio
governo a privou dos meios de fazê-lo. O Estado, por exemplo, pagava-lhe por
barril extraído uma fração do seu valor de mercado (US$ 42) e embolsava a
diferença. Depois de o governo espanhol prometer, com o apoio da União Europeia
(UE), fortes represálias ao "claríssimo
gesto de hostilidade" de Buenos Aires, como disse o ministro da
Indústria José Manuel Soria, o presidente da Repsol, Antonio Brufau, acusou o
governo Cristina Kirchner de forçar a baixa das ações da YPF para comprá-las a
preço vil.
ELE
atribuiu a desapropriação à intenção de Cristina Kirchner de açambarcar a
exploração do riquíssimo Campo de Vaca Muerta, na província de Neuquén,
descoberto e posto a operar pela Repsol no ano passado. As jazidas de óleo e gás
de xisto ali são estimadas em 22,5 bilhões de barris equivalentes, ou pouco
menos da metade das reservas brasileiras no pré-sal. Ora, depois da violência
jurídica perpetrada pelo governo argentino, no quadro de um surto nacionalista
que começou com a exumação da demanda pelas "Malvinas argentinas", passados 30 anos da sua fracassada
invasão, com que parceiros o país poderá contar para voltar ao seu passado de
autonomia e superávits comerciais na área de energia? Cristina diz que quer
implantar o "modelo brasileiro"
no setor, numa alusão aos 51% que o Estado Brasileiro detém na Companhia
Petróleo do Brasil (Petrobrás S/A), mas hostilizou a empresa brasileira ao
cancelar a concessão de que dispunha em Neuquén, onde já tinha investido US$ 10
milhões.
A
ÚNICA - e pervertida - lógica pela qual Cristina Kirchner parece pautar-se,
ainda mais depois de sua reeleição no ano passado com um formidável estoque de
votos, é a do populismo crasso. O pior é que a Argentina já viu diversas
versões deste filme. Nenhuma terminou bem.
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