Outro ato de lesa-cidadania
O PLENÁRIO da Câmara dos Deputados modificou o projeto de emenda constitucional (PEC) que o Senado Federal aprovou em Abril último, permitindo a Estados e Municípios pagar quando quiserem as dívidas atrasadas com empresas e pessoas físicas, reconhecidas em sentenças judiciais de última instância - os chamados precatórios. Mas a nova versão, aprovada semana passada em primeiro turno por 328 deputados, apenas 20 a mais do que o quórum mínimo de 3/5 dos votos exigidos para alterações constitucionais, não é menos indecente do que a original, ao ratificar na sua essência o princípio do calote, promovido a "ferramenta permanente de gestão pública", conforme a avaliação irrefutável da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).
TANTO que o prefeito da Cidade de São Paulo (SP), Gilberto Kassab (DEM-SP), que em ambas as votações liderou o lobby de seus pares pela "legitimação do calote", nas palavras do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), deu-se por satisfeito com o desfecho. "O texto aprovado", declarou, "está bastante consensual" - decerto "na ótica dos governantes e não da cidadania", como diz Alencar. A Prefeitura de São Paulo deve R$ 14 bilhões em precatórios vencidos. No País inteiro, estima-se que o estoque desses débitos já ultrapassa R$ 100 bilhões, ou cerca de 20% das receitas estaduais e municipais. É um escândalo continuado. A Constituição Federal promulgada em 1988 deu ao poder público oito anos para pagar os seus precatórios, fossem eles alimentares (em geral salários, pensões e aposentadorias), relativos a desapropriações, ou por obras e serviços executados.
MAS em 2000, o Congresso Nacional premiou os administradores inadimplentes com mais 10 anos de prazo. Se essa PEC do Calote for definitivamente aprovada nos termos atuais, o prazo será de 15 anos no mínimo - e ilimitado. Limites, só para o cumprimento das decisões judiciais: para todos os efeitos práticos, o desembolso não excederá a 2% das receitas líquidas anuais (no caso dos Estados) ou 1,5% (no dos Municípios). As dívidas deixarão de ser corrigidas, como estipula a Constituição Federal, por uma fórmula que combina inflação mais juros de 12% ao ano. Quando a emenda for sancionada, a correção passará a ser feita pela variação da Taxa Referencial (TR) mais 0,5% ao mês, como no caso das cadernetas de poupança. A alteração beneficiará os entes devedores. Eles também ficarão livres do risco de bloqueio dos seus recursos em caso de inadimplência.
SEGUNDO o texto aprovado, a cada exercício, governadores e prefeitos terão a prerrogativa de saldar metade dos seus débitos por meio de leilões ou "câmaras de conciliação" (sic). Dessas modalidades participarão os credores que aceitarem, como último recurso, receber apenas uma fração do que lhes cabe, para não esperar uma eternidade pelos valores a que têm direito líquido e certo. Os outros 50% serão quitados em ordem cronológica - o que a Constituição Federal já previa para todos os precatórios -, respeitadas as prioridades para os precatórios de natureza alimentar e, entre esses, para os credores com mais de 60 anos. Para os caloteiros, o melhor dos mundos era aquele do texto que vingou no Senado Federal. Mas a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados flagrou naquela versão diversas provisões inconstitucionais.
UMA DELAS previa que 40% dos recursos anuais para a quitação dos débitos seriam destinados a pagamentos de precatórios em ordem crescente. Isso permitiria aos devedores quitar valores menores antes dos outros, modificando, em consequência, a posição dos credores na fila original - uma rematada violência. Em seu lugar foi adotado o esquema de 50%-50% acima referido, que doura a pílula. Outra inovação, acrescida à proposta pelo relator Eduardo Cunha (PMDB-RJ), cria uma espécie de mercado paralelo de precatórios, ao autorizar os credores a transferir parte ou todos os seus direitos a terceiros.
O PARECER foi aprovado pela maioria dos deputados de ambos os lados da divisa entre Governo e Oposição, do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Democratas (DEM). Ainda assim, 76 parlamentares votaram contra a enormidade, repelida formalmente pelo Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL), o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido Socialista Cristão (PSC). Quatro deputados se abstiveram e uma centena deles se ausentou. Fosse o Brasil um país em que os eleitores se interessassem em saber o que fazem os seus representantes, os políticos que patrocinaram mais esse ato de lesa-cidadania correriam o sério risco de receber o troco nas urnas. Mas, sendo as coisas como são, sobra para os prejudicados.
TANTO que o prefeito da Cidade de São Paulo (SP), Gilberto Kassab (DEM-SP), que em ambas as votações liderou o lobby de seus pares pela "legitimação do calote", nas palavras do deputado Chico Alencar (PSOL-RJ), deu-se por satisfeito com o desfecho. "O texto aprovado", declarou, "está bastante consensual" - decerto "na ótica dos governantes e não da cidadania", como diz Alencar. A Prefeitura de São Paulo deve R$ 14 bilhões em precatórios vencidos. No País inteiro, estima-se que o estoque desses débitos já ultrapassa R$ 100 bilhões, ou cerca de 20% das receitas estaduais e municipais. É um escândalo continuado. A Constituição Federal promulgada em 1988 deu ao poder público oito anos para pagar os seus precatórios, fossem eles alimentares (em geral salários, pensões e aposentadorias), relativos a desapropriações, ou por obras e serviços executados.
MAS em 2000, o Congresso Nacional premiou os administradores inadimplentes com mais 10 anos de prazo. Se essa PEC do Calote for definitivamente aprovada nos termos atuais, o prazo será de 15 anos no mínimo - e ilimitado. Limites, só para o cumprimento das decisões judiciais: para todos os efeitos práticos, o desembolso não excederá a 2% das receitas líquidas anuais (no caso dos Estados) ou 1,5% (no dos Municípios). As dívidas deixarão de ser corrigidas, como estipula a Constituição Federal, por uma fórmula que combina inflação mais juros de 12% ao ano. Quando a emenda for sancionada, a correção passará a ser feita pela variação da Taxa Referencial (TR) mais 0,5% ao mês, como no caso das cadernetas de poupança. A alteração beneficiará os entes devedores. Eles também ficarão livres do risco de bloqueio dos seus recursos em caso de inadimplência.
SEGUNDO o texto aprovado, a cada exercício, governadores e prefeitos terão a prerrogativa de saldar metade dos seus débitos por meio de leilões ou "câmaras de conciliação" (sic). Dessas modalidades participarão os credores que aceitarem, como último recurso, receber apenas uma fração do que lhes cabe, para não esperar uma eternidade pelos valores a que têm direito líquido e certo. Os outros 50% serão quitados em ordem cronológica - o que a Constituição Federal já previa para todos os precatórios -, respeitadas as prioridades para os precatórios de natureza alimentar e, entre esses, para os credores com mais de 60 anos. Para os caloteiros, o melhor dos mundos era aquele do texto que vingou no Senado Federal. Mas a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados flagrou naquela versão diversas provisões inconstitucionais.
UMA DELAS previa que 40% dos recursos anuais para a quitação dos débitos seriam destinados a pagamentos de precatórios em ordem crescente. Isso permitiria aos devedores quitar valores menores antes dos outros, modificando, em consequência, a posição dos credores na fila original - uma rematada violência. Em seu lugar foi adotado o esquema de 50%-50% acima referido, que doura a pílula. Outra inovação, acrescida à proposta pelo relator Eduardo Cunha (PMDB-RJ), cria uma espécie de mercado paralelo de precatórios, ao autorizar os credores a transferir parte ou todos os seus direitos a terceiros.
O PARECER foi aprovado pela maioria dos deputados de ambos os lados da divisa entre Governo e Oposição, do Partido dos Trabalhadores (PT) ao Democratas (DEM). Ainda assim, 76 parlamentares votaram contra a enormidade, repelida formalmente pelo Partido do Socialismo e da Liberdade (PSOL), o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido Socialista Cristão (PSC). Quatro deputados se abstiveram e uma centena deles se ausentou. Fosse o Brasil um país em que os eleitores se interessassem em saber o que fazem os seus representantes, os políticos que patrocinaram mais esse ato de lesa-cidadania correriam o sério risco de receber o troco nas urnas. Mas, sendo as coisas como são, sobra para os prejudicados.
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