Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

sábado, janeiro 22, 2011

Da inexistência da ousadia

MILÃO – A LINHA geral do novo governo do Brasil parece apontar para a direção correta - com uma exceção: a recusa da presidente da República, Dilma Wana Rousseff (PT-RS), a se engajar, pelo menos no início do seu mandato (2011-14), na promoção inevitavelmente onerosa de reformas legislativas estruturais da Previdência e Seguridade Social e do sistema político. Anunciadas na primeira reunião ministerial, que se alongou por quatro horas no último dia 14, as intenções da presidente Rousseff representam, em alguns casos, uma virada de página em relação ao passado recente.

UM chefe de governo claramente empenhado em manter sob o seu controle as agências reguladoras dos setores estratégicos da atividade, por exemplo, é sucedido por uma defensora assumida da autonomia dessas entidades, para não serem capturadas nem pelos interesses econômicos nem pela fisiologia ou o preconceito ideológico. No lugar de um presidente sempre pronto a ceder às pressões dos aliados para nomear afilhados de caciques políticos para o cobiçado segundo escalão da administração direta e indireta, emerge uma governante que afirma dar prioridade ao currículo técnico dos eventuais candidatos e não apenas ao poderio de seus patrocinadores. "Eficiência e ética são faces da mesma moeda", ensinou Rousseff aos 37 membros de sua equipe. É bem verdade que ela tem no seu passivo ter dado corda a quem viria a substituí-la no comando da Casa Civil da Presidência da República na gestão Luiz Inácio da Silva (2003-10), com as consequências de todos conhecidas, a sua ex-auxiliar mais próxima, dona Erenice Guerra (PT-SP). Foi igualmente constrangedor vê-las confraternizando na festa da posse presidencial no Palácio do Planalto no último dia 01. Mas conceda-se à nova presidente o benefício da dúvida, tomando pelo valor de face as suas promessas - e advertências - de rigor ético. É animadora a associação que ela fez entre a retidão de conduta dos agentes públicos e a qualidade do seu desempenho, embora não haja necessariamente uma relação de causa e efeito entre as duas coisas (afinal, pode-se ser honesto e incompetente). Valeu como sinalização.

JÁ antes da reunião ministerial se atribuiu a dona Rousseff uma frase sintomática de sua percepção do nexo entre a corrupção e as facilidades proporcionadas aos corruptos em potencial pelas deficiências da própria máquina administrativa, os proverbiais ralos por onde escorrem os recursos públicos. "Não quero a virtude dos homens, mas a das instituições", teria dito. A virtude gerencial dos homens e mulheres da presidente da República terá o seu primeiro teste na definição dos programas e projetos prioritários de cada Pasta - a sua "lição de casa" inaugural - sob o guante dos cortes da ordem de R$ 40 bilhões nos gastos do Poder Executivo, determinados por Rousseff. A partir do próximo dia 04, quando os ministros de Estado terão dito a que vieram, a tesoura começará a cortar.

MUITO embora o ministro de Estado da Fazenda, Guido Mantega (PT-SP), tenha inventado um eufemismo - "consolidação fiscal" - para evitar o termo apropriado, "ajuste", ele avisou aos colegas que o governo espera que levem a sério o "esforço duro" cobrado pela presidente da República. A nova palavra de ordem, diz a ministra de Estado do Planejamento Orçamento e Gestão, Miriam Belchior (PT-SP), é "fazer mais com menos". Para economizar também tempo, Rousseff dividiu o Gabinete em quatro grupos, pelo critério de afinidade: desenvolvimento econômico; infraestrutura; erradicação da miséria; e direitos humanos; coordenados, respectivamente, por Mantega, Belchior, a ministra de Estado do Desenvolvimento Social, Tereza Campelo (PT-RS), e o ministro-chefe da Secretária-Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho (PT-SP). Os dois primeiros e, naturalmente, o ministro-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Antonio Palocci Filho (PT-SP), terão assento em todos os grupos.

A PREOCUPAÇÃO da presidente da República com ações palpáveis em época de contenção acentuada de despesas contrasta com a sua relutância em aproveitar o patrimônio herdado das urnas para afinal regulamentar a legislação sobre a aposentadoria do funcionalismo público e avançar na integração geral do sistema de previdência e seguridade social - ainda que para alcançar apenas os futuros participantes do mercado de trabalho. Assim como nesse caso, delegar ao Congresso Nacional a reforma política, sob uma atitude de negligência benigna, é garantia de que tudo continuará tal e qual. O zelo administrativo evidenciado por Rousseff não a exime da coragem de ousar. É o que transforma os gestores em estadistas.