Corrida contra o tempo
SINTRA – INFLAÇÃO, excesso de gasto público, buraco na conta externa e uma enorme carência de investimentos seriam desafios duros para qualquer novo chefe de governo. Mas a presidente da República, Dilma Wana Rousseff (PT-RS), além de cuidar dessa herança maldita, ainda terá de resolver um problema incomum. Recebida a faixa presidencial, no último Sábado, 01, faltará assumir de fato a chefia do Poder Executivo e neutralizar a influência e o apego ao poder de seu antecessor e grande eleitor, Luiz Inácio da Silva (PT-SP). Dele dependeu direta ou indiretamente a formação da maior parte do Ministério. Na Pasta econômica mais importante, a da Fazenda, nem sequer foi trocada a figura principal.
O PRÓPRIO ministro de Estado da Fazenda, Guido Mantega (PT-SP), terá de assumir um novo papel, no mesmo cargo, se quiser cumprir as tarefas mais urgentes. Tesoureiro da gastança no segundo mandato do governo Luiz Inácio da Silva (2006-10), precisará adotar a política da austeridade para corrigir os excessos do governo anterior.
MANTEGA mesmo, pouco depois de convidado para continuar no posto, havia reconhecido a necessidade de ajuste nas contas públicas. Chegou a falar sobre a possibilidade de atraso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Foi logo desautorizado pelo agora ex-presidente da República. Naquele instante, “O-CARA!” estava censurando não um membro de seu Ministério, mas o ministro indicado por ele para cuidar das finanças do governo Rousseff (2011-14).
E SE o crescimento econômico for reduzido para 4,5% em 2011, como projetam o governo e o mercado, será difícil evitar a austeridade e, ao mesmo tempo, arrumar as contas públicas. A meta fiscal tem sido alcançada graças à ampliação da receita e não ao controle de gastos. Em 2010, o superávit primário acumulado até novembro chegou a 2,74% do Produto Interno Bruto (PIB), bem longe da meta de 3,1%.
UM novo estilo de política fiscal será importante não só para o ajuste em 2011, mas também para a construção de uma economia mais saudável nos próximos quatro anos. A presidente da República, Dilma Rousseff, prometeu baixar a taxa real de juros. Se não quiser recorrer a truques de resultado efêmero, terá de implantar a disciplina financeira, abrindo espaço para uma política monetária mais branda. Mas o abrandamento dificilmente poderá ocorrer em 2011, porque a inflação projetada pelo mercado e pelo Banco Central do Brasil (BC) está acima do centro da meta (4,5%). Os preços das matérias-primas, com alta de 33,57% no ano, indicam fortes pressões.
MODERAÇÃO no gasto público será fundamental, também, para a redução da carga tributária e, principalmente, de impostos e contribuições sobre o investimento, a produção e a exportação. O governo tem realizado remendos fiscais para dar algum alívio ao setor produtivo, mas com resultados modestos.
O PODER de competição nos mercados internacionais, indispensável à manutenção e à criação de empregos, dependerá também de outros fatores, como investimento em infraestrutura. Em 2010, o Tesouro Nacional (TN) investiu até 25 de Dezembro só 58,6% do previsto para isso no orçamento. A maior parte do desembolso correspondeu a restos a pagar. Quanto ao investimento das estatais, foi realizado quase só pela Petrobrás.
NO setor externo as projeções para 2011 apontam um déficit em conta corrente na faixa de US$ 64 bilhões a US$ 69 bilhões. O resultado dependerá em boa parte do esforço de exportação, mas um aumento duradouro da competitividade só virá com um amplo conjunto de políticas.
ESSE novo governo terá de buscar o reequilíbrio econômico e, ao mesmo tempo, enfrentar enormes compromissos já assumidos. Caberá ao TN e ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) boa parte dos investimentos para a Copa do Mundo da Fifa em 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016. Esses investimentos estão atrasados e provavelmente custarão mais que o previsto.
A TAREFA desse novo governo ficará incompleta se não for retomada a modernização institucional, necessária tanto à democracia quanto ao sistema produtivo. As reformas política e tributária, itens fundamentais dessa pauta, foram abandonadas pelo governo Luiz Inácio da Silva (2003-10), provavelmente por envolverem negociações muito complexas. A presidente Rousseff deveria colocar essa pauta entre suas prioridades.
CONTUDO desde o último Sábado, 01, o Brasil tem uma nova presidente da República. E o que desde logo se pode esperar é que haja uma mudança radical, para melhor, do estilo de governar. É claro que o que será feito importa mais do que o como se fez. Mas em política essa relação entre forma e conteúdo, estilo e ação tem lá suas sutilezas. É muito comum, aliás, que se dissociem. Oito anos do lullismo o demonstram. Luiz Inácio da Silva ajudou a mudar o País para melhor em muitos aspectos, mas tudo o que fez e, principalmente, o que deixou de fazer levam a marca profunda de seu estilo populista de governar, de sua preocupação obsessiva de ser reconhecido como um líder de raízes populares fiel a suas origens e, por isso, idolatrado por seu povo. Sob esse aspecto Rousseff difere em tudo do homem que a conduziu à Presidência da República. Das origens ao tipo de militância que os introduziu na vida pública. Do temperamento à consequente maneira de se relacionar com o mundo. De modo que após a overdose de um presidente da República boquirroto, megalômano e narcisista, é de esperar que o Brasil possa conviver agora com um chefe de Estado e de governo que se comporte de acordo com a compostura que a liturgia da Presidência da República mesmo num País grande e bobo exige. Tudo indica que assim será. O que já é um bom começo.
AGORA que passou a ser a primeira mandatária de dos brasileiros, é justo que todos, a despeito de divergências que provavelmente se manterão, se disponham a conceder-lhe um crédito inicial de confiança. Cada um no seu papel - o que implica, para nós que fazemos a Imprensa, manter diante do poder público a postura de permanente fiscalização e cobrança -, devemos agora encarar o futuro como um recomeço. É assim que funciona a democracia.
ESSA mudança de estilo pode significar pouco em termos da consolidação dos avanços duramente conquistados nas últimas décadas e das profundas transformações de que o Brasil ainda necessita em benefício de todos. Mas, vale repetir, já será um bom começo. Essa previsível e desejável mudança pode significar, por exemplo, o fim da tentativa de manter o País dividido entre "nós" e "eles", entre os bons e os maus; da capciosa ladainha de que só os "predestinados" e "iguais" são capazes de compreender e lutar pelos interesses dos fracos e oprimidos. Governar é obra coletiva que tanto melhor se realiza quanto mais se persegue a unidade dentro da diversidade.
MESMO porque, ao que tudo indica, estando disposta, com os pés no chão, a se preocupar mais com o enorme desafio real que tem pela frente do que em lapidar a própria imagem, Rousseff certamente estará atenta às armadilhas que as circunstâncias de sua eleição criaram, com as quais terá que se haver desde logo. A mais delicada delas - de resto, óbvia - será seu relacionamento com Luiz Inácio da Silva. Na primeira prova a que foi submetida Rousseff superou as dificuldades com discrição e espírito conciliatório: a formação do Ministério, na qual a influência do seu padrinho político é notória e não se poderia esperar outra coisa. Sem alarde, a nova presidente da República deixou claro que essa é a equipe de governo que foi possível formar, dadas as condições de temperatura e pressão. Mas, de agora em diante, o presidente será ela. E isso de alguma maneira afetará a qualidade de seu relacionamento com o antecessor-preceptor, principalmente considerando que estará lidando com uma figura, para dizer o mínimo, ubíqua.
Ninguém se iluda com as últimas manifestações do ex-presidente da República em favor da candidatura à reeleição de Rousseff em 2014. Não há a menor hipótese de que um político extasiado com o próprio êxito, sempre "na sua", abandone a droga do poder.
QUER dizer, se nos próximos quatro anos de governo de Rousseff a economia brasileira não continuar mantendo o desempenho que faz as delícias de empresários, trabalhadores com carteira assinada, classe média, emergentes recém-habilitados ao consumo - o que, considerando as perspectivas adversas da conjuntura econômica internacional, talvez acabe se tornando inevitável -, ninguém se desespere: o salvador da Pátria estará pronto para o sacrifício. Ou alguém duvida de que Lula passará os próximos anos cultivando seus vertiginosos índices de popularidade?
ATÉ as eleições de 2012 a presidente Rousseff terá um ano e meio para aproveitar a força política das urnas e fazer o Congresso Nacional aprovar uma agenda que Luiz Inácio da Silva desistiu de tocar, mas é fundamental para a economia prosperar, para tornar mais limpa a prática política, para a dívida social recuar e para acabar com a miséria. Se conseguir, seu governo será bem avaliado e dará a ela cacife para ser reeleita em 2014, desta vez sem apadrinhamento algum. Será um período difícil, concentrado no prazo exíguo e, ao mesmo tempo, ampliado em múltiplos segmentos em que a ação do governo é fundamental e determinante para fazer o País avançar.
DESSA agenda tudo é prioritário, mas a reforma política se sobrepõe, porque ela abre caminho para facilitar, acelerar e viabilizar todo o resto. É uma espécie de mãe de todas as reformas. Na visão limitada dos políticos, a reforma política é simplesmente prover dinheiro público para financiar campanhas eleitorais e ponto. Ela é muito mais. É a espinha dorsal do fortalecimento das instituições e da democracia, o anteparo ao fisiologismo e à corrupção, desencoraja o desvio do dinheiro público e força presidente, governadores e prefeitos a governarem melhor, com mais eficiência. O interesse público estará preservado e a população ficará agradecida se suas regras atenderem a esses objetivos. Importante também é não ceder a pressões para afrouxar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e não permitir que governantes gastem mais do que podem. Sancionada no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), essa lei é parte integrante da reforma política, embora a vinculação não tenha sido explicitada na época da sua aprovação.
PARA aprovar as reformas e outros projetos do Poder Executivo no Congresso Nacional é fundamental que a nova presidente resista à prática do toma lá dá cá, ao jogo de chantagem dos parlamentares. Se ceder na primeira vez, a chantagem se espalha e Rousseff pode virar refém de uma prática que o lullismo e o Mensalão fartamente provaram ser desastrosa para o País e para quem o governa. Não só porque avança sobre o dinheiro do contribuinte. Também porque vender dificuldades para obter facilidades leva tempo, deforma o conteúdo das matérias, atrasa sua tramitação e o Poder Executivo acaba desistindo de projetos essenciais para o País. Foi o que aconteceu com Luiz Inácio da Silva, que desistiu das reformas da legislação tributária, trabalhista, sindical e previdenciária, causando um lamentável atraso de oito anos.
ROUSSEFF escolheu seu ministério, contemplando os dez partidos políticos da aliança que a elegeu. Em regimes democráticos, de representação partidária, essa prática é legítima, desde que os escolhidos tenham o passado limpo e agreguem competência e preparo técnico ao cargo. Em relação à maioria dos ministros escolhidos, tais critérios não foram, nem minimamente, observados. Mas está feito, vá lá. Agora ela vai enfrentar uma segunda etapa de pressões para nomear políticos em diretorias de estatais, agências reguladoras, órgãos públicos em Brasília (DF) e nos Estados da Federação e cargos no segundo, terceiro e quarto escalões do governo federal.
AÍ já é diferente. Mais uma vez, Rousseff precisa resistir com força, mostrar-se irredutível. Para administrar com eficiência o bem público, o governante não pode entregar cargos técnicos, que executam decisões e projetos de governo, a políticos fisiológicos, cujo interesse é unicamente extrair do cargo vantagens para seu Partido dos Trabalhadores (PT). Como julga que nunca erra, Luiz Inácio da Silva, na Presidência da República, recusou-se a aprender com erros. Mas Rousseff deve ter na memória os últimos oito anos de enorme desgaste político com os eleitores e fracasso de gestão em empresas estatais e órgãos públicos por seu padrinho político ter nomeado políticos oportunistas para cargos técnicos.
ESSE é o arcabouço político e humano com que Rousseff vai trabalhar nos próximos quatro anos. É imperfeito, sujeito a pressões políticas, lobbies e chantagens. Portanto, ela deve ficar permanentemente atenta para três objetivos: esgotar o calor das urnas para aprovar matérias difíceis - e de interesse do País - nos primeiros 18 meses de mandato; não nomear políticos incompetentes para funções técnicas; e adotar, desde já, por princípio não ceder a chantagens de parlamentares.
NA campanha eleitoral Rousseff evitou falar das reformas (política, tributária, trabalhista, sindical e previdenciária). É um tema politicamente complicado para ser defendido em momentos de caça aos votos. Mas Rousseff sabe que elas são tão essenciais quanto difíceis de passar no Congresso Nacional. Daí o esforço para tentar aprová-las nos primeiros 18 meses de governo. Além delas, fazem parte da agenda de curto prazo as microrreformas - dirigidas a apoiar o crescimento de longo prazo, criar ambientes propícios a novos negócios e a aumentar a eficiência do mercado. Eliminar papelada, encurtar prazos, facilitar, enfim, a burocracia para a abertura de empresas são providências bem-vindas para estimular novos investimentos, gerar emprego e renda. Correndo por fora desta agenda, a nova presidente vai enfrentar o complicado e minucioso trabalho de administrar o cotidiano da economia.
DONA Rousseff assume num momento em que a economia está mais aquecida do que deveria, pressionando a alta da inflação - o BC elevou sua projeção para 2011 de 4,6% para 5% - e gerando expectativa de o BC voltar a elevar a Taxa Selic na próxima reunião do seu Comitê de Política Monetária Copom. Se quiser evitar isso, Rousseff terá de endurecer no desempenho fiscal, cortar despesas, suspender contratações, frear a ambição do PT por cargos, recusar pressões e lobbies por gastos de toda ordem e, se necessário, cortar investimentos do PAC. Desequilibrado em razão do desajuste cambial e da crise nos países ricos, o déficit externo está em plena ascensão, devendo fechar 2010 em US$ 49 bilhões e, segundo o BC, em US$ 64 bilhões em 2011 - 31% maior do que este ano. Esse é um problema delicado que requer atenção e ação para não se agravar.
UMA boa notícia é que a maioria das empresas tem planos de investir em 2011, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mais investimento, mais emprego, mais dinheiro circulando, mais receita tributária. E é com esse aumento de receita que Rousseff deveria organizar um programa de pagamento gradual da dívida e de redução a zero do déficit público nominal.
NO mais, boa sorte ao Brasil e à gestão da nova presidente da República. Ela vai precisar. E um feliz ano-novo aos queridos leitores.
O PRÓPRIO ministro de Estado da Fazenda, Guido Mantega (PT-SP), terá de assumir um novo papel, no mesmo cargo, se quiser cumprir as tarefas mais urgentes. Tesoureiro da gastança no segundo mandato do governo Luiz Inácio da Silva (2006-10), precisará adotar a política da austeridade para corrigir os excessos do governo anterior.
MANTEGA mesmo, pouco depois de convidado para continuar no posto, havia reconhecido a necessidade de ajuste nas contas públicas. Chegou a falar sobre a possibilidade de atraso do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Foi logo desautorizado pelo agora ex-presidente da República. Naquele instante, “O-CARA!” estava censurando não um membro de seu Ministério, mas o ministro indicado por ele para cuidar das finanças do governo Rousseff (2011-14).
E SE o crescimento econômico for reduzido para 4,5% em 2011, como projetam o governo e o mercado, será difícil evitar a austeridade e, ao mesmo tempo, arrumar as contas públicas. A meta fiscal tem sido alcançada graças à ampliação da receita e não ao controle de gastos. Em 2010, o superávit primário acumulado até novembro chegou a 2,74% do Produto Interno Bruto (PIB), bem longe da meta de 3,1%.
UM novo estilo de política fiscal será importante não só para o ajuste em 2011, mas também para a construção de uma economia mais saudável nos próximos quatro anos. A presidente da República, Dilma Rousseff, prometeu baixar a taxa real de juros. Se não quiser recorrer a truques de resultado efêmero, terá de implantar a disciplina financeira, abrindo espaço para uma política monetária mais branda. Mas o abrandamento dificilmente poderá ocorrer em 2011, porque a inflação projetada pelo mercado e pelo Banco Central do Brasil (BC) está acima do centro da meta (4,5%). Os preços das matérias-primas, com alta de 33,57% no ano, indicam fortes pressões.
MODERAÇÃO no gasto público será fundamental, também, para a redução da carga tributária e, principalmente, de impostos e contribuições sobre o investimento, a produção e a exportação. O governo tem realizado remendos fiscais para dar algum alívio ao setor produtivo, mas com resultados modestos.
O PODER de competição nos mercados internacionais, indispensável à manutenção e à criação de empregos, dependerá também de outros fatores, como investimento em infraestrutura. Em 2010, o Tesouro Nacional (TN) investiu até 25 de Dezembro só 58,6% do previsto para isso no orçamento. A maior parte do desembolso correspondeu a restos a pagar. Quanto ao investimento das estatais, foi realizado quase só pela Petrobrás.
NO setor externo as projeções para 2011 apontam um déficit em conta corrente na faixa de US$ 64 bilhões a US$ 69 bilhões. O resultado dependerá em boa parte do esforço de exportação, mas um aumento duradouro da competitividade só virá com um amplo conjunto de políticas.
ESSE novo governo terá de buscar o reequilíbrio econômico e, ao mesmo tempo, enfrentar enormes compromissos já assumidos. Caberá ao TN e ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) boa parte dos investimentos para a Copa do Mundo da Fifa em 2014 e os Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016. Esses investimentos estão atrasados e provavelmente custarão mais que o previsto.
A TAREFA desse novo governo ficará incompleta se não for retomada a modernização institucional, necessária tanto à democracia quanto ao sistema produtivo. As reformas política e tributária, itens fundamentais dessa pauta, foram abandonadas pelo governo Luiz Inácio da Silva (2003-10), provavelmente por envolverem negociações muito complexas. A presidente Rousseff deveria colocar essa pauta entre suas prioridades.
CONTUDO desde o último Sábado, 01, o Brasil tem uma nova presidente da República. E o que desde logo se pode esperar é que haja uma mudança radical, para melhor, do estilo de governar. É claro que o que será feito importa mais do que o como se fez. Mas em política essa relação entre forma e conteúdo, estilo e ação tem lá suas sutilezas. É muito comum, aliás, que se dissociem. Oito anos do lullismo o demonstram. Luiz Inácio da Silva ajudou a mudar o País para melhor em muitos aspectos, mas tudo o que fez e, principalmente, o que deixou de fazer levam a marca profunda de seu estilo populista de governar, de sua preocupação obsessiva de ser reconhecido como um líder de raízes populares fiel a suas origens e, por isso, idolatrado por seu povo. Sob esse aspecto Rousseff difere em tudo do homem que a conduziu à Presidência da República. Das origens ao tipo de militância que os introduziu na vida pública. Do temperamento à consequente maneira de se relacionar com o mundo. De modo que após a overdose de um presidente da República boquirroto, megalômano e narcisista, é de esperar que o Brasil possa conviver agora com um chefe de Estado e de governo que se comporte de acordo com a compostura que a liturgia da Presidência da República mesmo num País grande e bobo exige. Tudo indica que assim será. O que já é um bom começo.
AGORA que passou a ser a primeira mandatária de dos brasileiros, é justo que todos, a despeito de divergências que provavelmente se manterão, se disponham a conceder-lhe um crédito inicial de confiança. Cada um no seu papel - o que implica, para nós que fazemos a Imprensa, manter diante do poder público a postura de permanente fiscalização e cobrança -, devemos agora encarar o futuro como um recomeço. É assim que funciona a democracia.
ESSA mudança de estilo pode significar pouco em termos da consolidação dos avanços duramente conquistados nas últimas décadas e das profundas transformações de que o Brasil ainda necessita em benefício de todos. Mas, vale repetir, já será um bom começo. Essa previsível e desejável mudança pode significar, por exemplo, o fim da tentativa de manter o País dividido entre "nós" e "eles", entre os bons e os maus; da capciosa ladainha de que só os "predestinados" e "iguais" são capazes de compreender e lutar pelos interesses dos fracos e oprimidos. Governar é obra coletiva que tanto melhor se realiza quanto mais se persegue a unidade dentro da diversidade.
MESMO porque, ao que tudo indica, estando disposta, com os pés no chão, a se preocupar mais com o enorme desafio real que tem pela frente do que em lapidar a própria imagem, Rousseff certamente estará atenta às armadilhas que as circunstâncias de sua eleição criaram, com as quais terá que se haver desde logo. A mais delicada delas - de resto, óbvia - será seu relacionamento com Luiz Inácio da Silva. Na primeira prova a que foi submetida Rousseff superou as dificuldades com discrição e espírito conciliatório: a formação do Ministério, na qual a influência do seu padrinho político é notória e não se poderia esperar outra coisa. Sem alarde, a nova presidente da República deixou claro que essa é a equipe de governo que foi possível formar, dadas as condições de temperatura e pressão. Mas, de agora em diante, o presidente será ela. E isso de alguma maneira afetará a qualidade de seu relacionamento com o antecessor-preceptor, principalmente considerando que estará lidando com uma figura, para dizer o mínimo, ubíqua.
Ninguém se iluda com as últimas manifestações do ex-presidente da República em favor da candidatura à reeleição de Rousseff em 2014. Não há a menor hipótese de que um político extasiado com o próprio êxito, sempre "na sua", abandone a droga do poder.
QUER dizer, se nos próximos quatro anos de governo de Rousseff a economia brasileira não continuar mantendo o desempenho que faz as delícias de empresários, trabalhadores com carteira assinada, classe média, emergentes recém-habilitados ao consumo - o que, considerando as perspectivas adversas da conjuntura econômica internacional, talvez acabe se tornando inevitável -, ninguém se desespere: o salvador da Pátria estará pronto para o sacrifício. Ou alguém duvida de que Lula passará os próximos anos cultivando seus vertiginosos índices de popularidade?
ATÉ as eleições de 2012 a presidente Rousseff terá um ano e meio para aproveitar a força política das urnas e fazer o Congresso Nacional aprovar uma agenda que Luiz Inácio da Silva desistiu de tocar, mas é fundamental para a economia prosperar, para tornar mais limpa a prática política, para a dívida social recuar e para acabar com a miséria. Se conseguir, seu governo será bem avaliado e dará a ela cacife para ser reeleita em 2014, desta vez sem apadrinhamento algum. Será um período difícil, concentrado no prazo exíguo e, ao mesmo tempo, ampliado em múltiplos segmentos em que a ação do governo é fundamental e determinante para fazer o País avançar.
DESSA agenda tudo é prioritário, mas a reforma política se sobrepõe, porque ela abre caminho para facilitar, acelerar e viabilizar todo o resto. É uma espécie de mãe de todas as reformas. Na visão limitada dos políticos, a reforma política é simplesmente prover dinheiro público para financiar campanhas eleitorais e ponto. Ela é muito mais. É a espinha dorsal do fortalecimento das instituições e da democracia, o anteparo ao fisiologismo e à corrupção, desencoraja o desvio do dinheiro público e força presidente, governadores e prefeitos a governarem melhor, com mais eficiência. O interesse público estará preservado e a população ficará agradecida se suas regras atenderem a esses objetivos. Importante também é não ceder a pressões para afrouxar a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e não permitir que governantes gastem mais do que podem. Sancionada no governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), essa lei é parte integrante da reforma política, embora a vinculação não tenha sido explicitada na época da sua aprovação.
PARA aprovar as reformas e outros projetos do Poder Executivo no Congresso Nacional é fundamental que a nova presidente resista à prática do toma lá dá cá, ao jogo de chantagem dos parlamentares. Se ceder na primeira vez, a chantagem se espalha e Rousseff pode virar refém de uma prática que o lullismo e o Mensalão fartamente provaram ser desastrosa para o País e para quem o governa. Não só porque avança sobre o dinheiro do contribuinte. Também porque vender dificuldades para obter facilidades leva tempo, deforma o conteúdo das matérias, atrasa sua tramitação e o Poder Executivo acaba desistindo de projetos essenciais para o País. Foi o que aconteceu com Luiz Inácio da Silva, que desistiu das reformas da legislação tributária, trabalhista, sindical e previdenciária, causando um lamentável atraso de oito anos.
ROUSSEFF escolheu seu ministério, contemplando os dez partidos políticos da aliança que a elegeu. Em regimes democráticos, de representação partidária, essa prática é legítima, desde que os escolhidos tenham o passado limpo e agreguem competência e preparo técnico ao cargo. Em relação à maioria dos ministros escolhidos, tais critérios não foram, nem minimamente, observados. Mas está feito, vá lá. Agora ela vai enfrentar uma segunda etapa de pressões para nomear políticos em diretorias de estatais, agências reguladoras, órgãos públicos em Brasília (DF) e nos Estados da Federação e cargos no segundo, terceiro e quarto escalões do governo federal.
AÍ já é diferente. Mais uma vez, Rousseff precisa resistir com força, mostrar-se irredutível. Para administrar com eficiência o bem público, o governante não pode entregar cargos técnicos, que executam decisões e projetos de governo, a políticos fisiológicos, cujo interesse é unicamente extrair do cargo vantagens para seu Partido dos Trabalhadores (PT). Como julga que nunca erra, Luiz Inácio da Silva, na Presidência da República, recusou-se a aprender com erros. Mas Rousseff deve ter na memória os últimos oito anos de enorme desgaste político com os eleitores e fracasso de gestão em empresas estatais e órgãos públicos por seu padrinho político ter nomeado políticos oportunistas para cargos técnicos.
ESSE é o arcabouço político e humano com que Rousseff vai trabalhar nos próximos quatro anos. É imperfeito, sujeito a pressões políticas, lobbies e chantagens. Portanto, ela deve ficar permanentemente atenta para três objetivos: esgotar o calor das urnas para aprovar matérias difíceis - e de interesse do País - nos primeiros 18 meses de mandato; não nomear políticos incompetentes para funções técnicas; e adotar, desde já, por princípio não ceder a chantagens de parlamentares.
NA campanha eleitoral Rousseff evitou falar das reformas (política, tributária, trabalhista, sindical e previdenciária). É um tema politicamente complicado para ser defendido em momentos de caça aos votos. Mas Rousseff sabe que elas são tão essenciais quanto difíceis de passar no Congresso Nacional. Daí o esforço para tentar aprová-las nos primeiros 18 meses de governo. Além delas, fazem parte da agenda de curto prazo as microrreformas - dirigidas a apoiar o crescimento de longo prazo, criar ambientes propícios a novos negócios e a aumentar a eficiência do mercado. Eliminar papelada, encurtar prazos, facilitar, enfim, a burocracia para a abertura de empresas são providências bem-vindas para estimular novos investimentos, gerar emprego e renda. Correndo por fora desta agenda, a nova presidente vai enfrentar o complicado e minucioso trabalho de administrar o cotidiano da economia.
DONA Rousseff assume num momento em que a economia está mais aquecida do que deveria, pressionando a alta da inflação - o BC elevou sua projeção para 2011 de 4,6% para 5% - e gerando expectativa de o BC voltar a elevar a Taxa Selic na próxima reunião do seu Comitê de Política Monetária Copom. Se quiser evitar isso, Rousseff terá de endurecer no desempenho fiscal, cortar despesas, suspender contratações, frear a ambição do PT por cargos, recusar pressões e lobbies por gastos de toda ordem e, se necessário, cortar investimentos do PAC. Desequilibrado em razão do desajuste cambial e da crise nos países ricos, o déficit externo está em plena ascensão, devendo fechar 2010 em US$ 49 bilhões e, segundo o BC, em US$ 64 bilhões em 2011 - 31% maior do que este ano. Esse é um problema delicado que requer atenção e ação para não se agravar.
UMA boa notícia é que a maioria das empresas tem planos de investir em 2011, segundo pesquisa da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Mais investimento, mais emprego, mais dinheiro circulando, mais receita tributária. E é com esse aumento de receita que Rousseff deveria organizar um programa de pagamento gradual da dívida e de redução a zero do déficit público nominal.
NO mais, boa sorte ao Brasil e à gestão da nova presidente da República. Ela vai precisar. E um feliz ano-novo aos queridos leitores.
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