A escolha de Serra
São Paulo (SP) - * “JOSÉ Serra quase desistiu de disputar a eleição presidencial deste ano, no fim de Janeiro ultimo. Haveria motivos para a desistência. O País cresce à taxa de 6% e o consumo explode, sob o influxo do real valorizado e do ingresso de capitais de curto prazo, num cenário de déficit na conta corrente que será sustentado durante o ciclo eleitoral. Dilma Rousseff (PT-RS) é a candidata de Luiz Inacio da Silva (PT-SP), do núcleo do setor financeiro, dos maiores grupos empresariais e da elite de neopelegos sindicais. A decisão de seguir em frente revela a coragem política do governador paulista. Contudo, contraditoriamente, sua estratégia de campanha reflete a sagacidade convencional dos marqueteiros, não o compromisso ousado de um estadista que rema contra a maré em circunstâncias excepcionais.
MARQUETEIROS leem pesquisas como seminaristas leem a Bíblia. Do alto de seu literalismo fetichista, disseram a Serra que confrontar Lula equivale a derrota certa. Então, o governador resolveu comparar sua biografia à da candidata palaciana. Mas Dilma não existe, exceto como metáfora, o que anula a estratégia serrista. "Vai ficar um vazio nessa cédula e, para que esse vazio seja preenchido, eu mudei de nome e vou colocar Dilma lá na cédula", explicou Lula, cuja estratégia não é definida por marqueteiros. O pseudônimo circunstancial de Lula representa uma política, que é o lulismo. A candidatura de Serra só tem sentido se ele diverge dessa política.
O LULLISMO não é a política macroeconômica do governo, tomada de empréstimo de do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), mas uma concepção sobre o Estado. A sua vinheta de propaganda, divulgada com dinheiro público pelo marketing oficial, diz que o Brasil é "um país de todos". Eis a mentira a ser exposta. O Estado lullista é um conglomerado de interesses privados. Nele se acomodam a elite patrimonialista tradicional, a nova elite política petista, grandes empresas associadas aos fundos de pensão, centrais sindicais chapa-branca e movimentos sociais financiados pelo governo.
O BRASIL não é `de todos', mas de alguns: as máfias que colonizam o aparelho de Estado por meio de indicações políticas para mais de 600 mil cargos de confiança em todos os níveis de governo. Num "país de todos", a administração pública é conduzida por uma burocracia profissional. O Brasil do lulismo, no qual José Sarney adquiriu o estatuto de `homem incomum', não fará uma reforma do Estado. Estaria Serra disposto a erguer essa bandeira, afrontando o patrimonialismo entranhado em sua própria base política?
O PAIS não é "de todos", mas de alguns: Eike Batista, o sócio do Banco Nacional de Desenvolvimento Economico e Social (BNDES), `o melhor banco de fomento do mundo', nas suas palavras, do qual recebeu um presente de R$ 70 milhões numa operação escabrosa no mercado acionário. Também é o país dos controladores da Empresa Oi (ex-Telemar e suas subsidiarias e coligadas), que erguem um semimonopólio a partir de privilégios concedidos pelo governo, inclusive uma providencial alteração anticompetitiva na Lei Geral de Telecomunicações (LGT), e se preparam para formar uma parceria com a finada Telebrás no sistema de de Internet de alto velocidade. O lullismo orienta-se na direção de um capitalismo de Estado no qual o BNDES, as estatais e os fundos de pensão transferem recursos públicos para empresários que orbitam ao redor do poder. Teria Serra a coragem de criticar o modelo em gestação, inscrevendo na sua plataforma a separação entre o interesse público e os interesses privados?
ESSE Pais não é `de todos', mas de alguns: a nova burocracia sindical, cuja influência não depende do apoio dos trabalhadores, mas do imposto compulsório de origem varguista, repaginado pelo lulismo. Ousaria Ze Serra defender a adoção da Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), declarando guerra ao neopeleguismo e retomando a palavra de ordem da liberdade sindical que um dia pertenceu ao Partido dos Trabalhadores (PT) e à Central única dos Trabalhadores (CUT)?
NUM `país de todos', o sigilo bancário e o fiscal só podem ser quebrados por decisão judicial. No Brasil do lullismo, como atestam os casos do caseiro Francenildo Costa e do vice-presidente dao Partido da Social Democracia Brasileiran (PSDB) e ex-secretario-geral da Presidencia da Republica (1995-2002), Eduardo Jorge Caldas Pereira (PSDB-SP), eles valem menos que as conveniências de um poder inclinado a operar pela chantagem. Num `país de todos', a cidadania é um contrato apoiado no princípio da igualdade perante a lei. No Brasil do lulismo, os indivíduos ganham rótulos raciais oficiais, que regulam o exercício de direitos e traçam fronteiras sociais intransponíveis. Num `país de todos', a política externa subordina-se a valores consagrados na Constituição, como a promoção dos direitos humanos. No Brasil do lulismo, a palavra constitucional verga-se diante de ideologias propensas à celebração de ditaduras enroladas nos trapos de um visceral antiamericanismo. Estaria Serra disposto a falar de democracia, liberdade e igualdade, distinguindo-se do lulismo no campo estratégico dos valores fundamentais?
O LULLISMO é uma doutrina conservadora que veste uma fantasia de esquerda. Sob Lula, expandiram-se como nunca os programas de transferência direta de renda, que produzem evidentes dividendos eleitorais, mas pouco se fez nas esferas da Educação, da Saúde e da Segurança Pública. No país de alguns, os pobres não têm direito a escolas públicas e hospitais de qualidade ou à proteção do Estado diante do crime organizado.
TERIA Serra o desassombro de deixar ao relento os Eikes Batistas do mundo, comprometendo-se com um ambicioso plano de metas destinado a universalizar os direitos sociais?
EXISTE um subtexto na decisão de Serra de comparar biografias. Ele está dizendo que existe um consenso político básico, cabendo aos eleitores a tarefa de definir o nome do gerente desse consenso nacional. É uma falsa mensagem, que Lula se encarrega de desmascarar todos os dias. Os brasileiros votarão num plebiscito sobre o lulismo. Se Serra não entender isso, perderá as eleições e deixará a cena como um político comum, impróprio para circunstâncias excepcionais. Mas ele ainda tem a oportunidade de escolher o caminho do estadista e perder as eleições falando de política. Nesse caso ? e só nesse! ? pode até mesmo triunfar nas urnas”.
*Demetrio Magnoli - sociologo e Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e articulista convidado dessas NOTAS.
MARQUETEIROS leem pesquisas como seminaristas leem a Bíblia. Do alto de seu literalismo fetichista, disseram a Serra que confrontar Lula equivale a derrota certa. Então, o governador resolveu comparar sua biografia à da candidata palaciana. Mas Dilma não existe, exceto como metáfora, o que anula a estratégia serrista. "Vai ficar um vazio nessa cédula e, para que esse vazio seja preenchido, eu mudei de nome e vou colocar Dilma lá na cédula", explicou Lula, cuja estratégia não é definida por marqueteiros. O pseudônimo circunstancial de Lula representa uma política, que é o lulismo. A candidatura de Serra só tem sentido se ele diverge dessa política.
O LULLISMO não é a política macroeconômica do governo, tomada de empréstimo de do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), mas uma concepção sobre o Estado. A sua vinheta de propaganda, divulgada com dinheiro público pelo marketing oficial, diz que o Brasil é "um país de todos". Eis a mentira a ser exposta. O Estado lullista é um conglomerado de interesses privados. Nele se acomodam a elite patrimonialista tradicional, a nova elite política petista, grandes empresas associadas aos fundos de pensão, centrais sindicais chapa-branca e movimentos sociais financiados pelo governo.
O BRASIL não é `de todos', mas de alguns: as máfias que colonizam o aparelho de Estado por meio de indicações políticas para mais de 600 mil cargos de confiança em todos os níveis de governo. Num "país de todos", a administração pública é conduzida por uma burocracia profissional. O Brasil do lulismo, no qual José Sarney adquiriu o estatuto de `homem incomum', não fará uma reforma do Estado. Estaria Serra disposto a erguer essa bandeira, afrontando o patrimonialismo entranhado em sua própria base política?
O PAIS não é "de todos", mas de alguns: Eike Batista, o sócio do Banco Nacional de Desenvolvimento Economico e Social (BNDES), `o melhor banco de fomento do mundo', nas suas palavras, do qual recebeu um presente de R$ 70 milhões numa operação escabrosa no mercado acionário. Também é o país dos controladores da Empresa Oi (ex-Telemar e suas subsidiarias e coligadas), que erguem um semimonopólio a partir de privilégios concedidos pelo governo, inclusive uma providencial alteração anticompetitiva na Lei Geral de Telecomunicações (LGT), e se preparam para formar uma parceria com a finada Telebrás no sistema de de Internet de alto velocidade. O lullismo orienta-se na direção de um capitalismo de Estado no qual o BNDES, as estatais e os fundos de pensão transferem recursos públicos para empresários que orbitam ao redor do poder. Teria Serra a coragem de criticar o modelo em gestação, inscrevendo na sua plataforma a separação entre o interesse público e os interesses privados?
ESSE Pais não é `de todos', mas de alguns: a nova burocracia sindical, cuja influência não depende do apoio dos trabalhadores, mas do imposto compulsório de origem varguista, repaginado pelo lulismo. Ousaria Ze Serra defender a adoção da Convenção 87 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), declarando guerra ao neopeleguismo e retomando a palavra de ordem da liberdade sindical que um dia pertenceu ao Partido dos Trabalhadores (PT) e à Central única dos Trabalhadores (CUT)?
NUM `país de todos', o sigilo bancário e o fiscal só podem ser quebrados por decisão judicial. No Brasil do lullismo, como atestam os casos do caseiro Francenildo Costa e do vice-presidente dao Partido da Social Democracia Brasileiran (PSDB) e ex-secretario-geral da Presidencia da Republica (1995-2002), Eduardo Jorge Caldas Pereira (PSDB-SP), eles valem menos que as conveniências de um poder inclinado a operar pela chantagem. Num `país de todos', a cidadania é um contrato apoiado no princípio da igualdade perante a lei. No Brasil do lulismo, os indivíduos ganham rótulos raciais oficiais, que regulam o exercício de direitos e traçam fronteiras sociais intransponíveis. Num `país de todos', a política externa subordina-se a valores consagrados na Constituição, como a promoção dos direitos humanos. No Brasil do lulismo, a palavra constitucional verga-se diante de ideologias propensas à celebração de ditaduras enroladas nos trapos de um visceral antiamericanismo. Estaria Serra disposto a falar de democracia, liberdade e igualdade, distinguindo-se do lulismo no campo estratégico dos valores fundamentais?
O LULLISMO é uma doutrina conservadora que veste uma fantasia de esquerda. Sob Lula, expandiram-se como nunca os programas de transferência direta de renda, que produzem evidentes dividendos eleitorais, mas pouco se fez nas esferas da Educação, da Saúde e da Segurança Pública. No país de alguns, os pobres não têm direito a escolas públicas e hospitais de qualidade ou à proteção do Estado diante do crime organizado.
TERIA Serra o desassombro de deixar ao relento os Eikes Batistas do mundo, comprometendo-se com um ambicioso plano de metas destinado a universalizar os direitos sociais?
EXISTE um subtexto na decisão de Serra de comparar biografias. Ele está dizendo que existe um consenso político básico, cabendo aos eleitores a tarefa de definir o nome do gerente desse consenso nacional. É uma falsa mensagem, que Lula se encarrega de desmascarar todos os dias. Os brasileiros votarão num plebiscito sobre o lulismo. Se Serra não entender isso, perderá as eleições e deixará a cena como um político comum, impróprio para circunstâncias excepcionais. Mas ele ainda tem a oportunidade de escolher o caminho do estadista e perder as eleições falando de política. Nesse caso ? e só nesse! ? pode até mesmo triunfar nas urnas”.
*Demetrio Magnoli - sociologo e Doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e articulista convidado dessas NOTAS.
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