Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, outubro 11, 2010

Jogo desprovido de cautela e senso de urgência

ITU (SP) – EM MAIS um esforço para conter a valorização do real, o governo elevou de 2% para 4% o imposto sobre o capital estrangeiro aplicado em papéis de renda fixa. A ideia é reduzir o apetite dos investidores pelos juros brasileiros, situados entre os mais altos do mundo. A novidade foi anunciada na última Segunda-feira, 04, um dia depois da realização do primeiro turno da eleição presidencial. Seis dias antes, em 28 de Setembro, o ministro de Estado da Fazenda, Guido Mantega (PT-SP), havia negado a necessidade do aumento, repetindo uma declaração à Imprensa no dia anterior. A decisão foi uma resposta ao novo patamar de valorização do real. Na semana da realização do primeiro turno eleitoral, pela primeira vez em dois anos, o dólar foi cotado abaixo de R$ 1,70.

LEVARÁ algum tempo para poder avaliar se a nova taxação produzirá o efeito desejado. O próprio governo não leva muita fé nos efeitos da medida. Ele sabe que a longo prazo, medidas como essa tendem a perder efeito, mas o seu objetivo, neste momento, é barrar a inundação do mercado brasileiro por uma enxurrada de dólares. Com o mundo rico ainda em crise e muita incerteza quanto ao sistema financeiro da Europa e dos Estados Unidos da América (EUA), o Brasil e outros emergentes têm atrativos especiais. No caso brasileiro, os juros muito altos são um atrativo importante.

DESDE o ano passado, o capital estrangeiro investido em ações e em papéis de renda fixa era taxado com 2% de Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Essa política recompôs, em parte, o fluxo de dólares, com maior concentração no mercado de renda fixa. Os juros continuaram muito atraentes e o impacto da medida foi limitado, segundo economistas do Fundo Monetário Internacional (FMI). Mas funcionará melhor a nova barreira?

AGORA, a alíquota do IOF dobrou e incidirá somente nos investimentos em renda fixa. "O jogo pode ser diferente", disse hoje à nossa reportagem o diretor do Departamento dos Mercados Monetário e de Capitais do FMI, o economista José Viñals. Mas, cauteloso, ele acrescentou que será preciso esperar algum tempo para avaliar a eficiência da medida.

O FMI é hoje bem mais flexível em relação a ações de controle de capitais. Durante décadas, o Fundo fez forte oposição a políticas de tipo restritivo. A liberalização dos mercados ainda é um objetivo desejável, mas o discurso mudou de tom. A mudança ocorreu quando se agravou a crise financeira iniciada em 2007. Hoje, o controle dos fluxos é considerado um dos instrumentos à disposição dos governos. Mas seus efeitos - isso é sempre ressaltado - tendem a diminuir depois do impacto inicial. Os investidores sempre descobrem novos caminhos para fazer transitar seu dinheiro.

O GOVERNO teve pelo menos dois motivos para só elevar a barreira às aplicações no mercado de renda fixa. Em primeiro lugar, esse é um alvo especialmente atrativo por causa dos altíssimos juros brasileiros. Em segundo lugar, restringir o ingresso de capitais no mercado de ações pode ser contraproducente, quando empresas brasileiras - a começar pela Companhia Brasileira de Petróleo S/A (Petrobrás) - precisam de volumosos recursos para investir. Os capitais destinados ao investimento direto já ingressavam e continuarão ingressando sem obstáculos.

A PARTIR do agravamento da crise econômica internacional, economistas do FMI e de outras instituições multilaterais previram o aumento dos fluxos de recursos para os países emergentes em melhores condições. Rapidamente se confirmou a presença do Brasil nesse grupo, já que o sistema financeiro nacional se manteve basicamente saudável e a recessão foi curta. Esse movimento deveria provocar a valorização das moedas desses países. O aumento de suas importações seria uma das consequências. Os brasileiros não teriam motivo para reclamar, se esses efeitos ocorressem somente na China e em algumas economias com grandes superávits externos. Mas a valorização da moeda foi maior no Brasil do que na China, com efeitos indesejáveis no comércio exterior e nas transações correntes do balanço de pagamentos.

O QUADRO global depende principalmente de dois atores, porque os chineses mantêm sua moeda subvalorizada e os norte-americanos continuam provocando uma inundação de dólares, com sua política monetária afrouxada. Enquanto os dois gigantes persistirem nesse jogo, os demais terão de seguir a regra do cada um por si.

COM crescimento econômico de 7,5% estimado para este ano e de 4,5% para 2011, o Brasil aparece bem num cenário global marcado por baixo dinamismo e alto desemprego no mundo rico. O País e a maior parte da América Latina (AL) continuam bem avaliados pelo FMI. Mantêm a respeitabilidade conquistada depois de várias e penosas tentativas de ajuste. Mas há sinais de perigo e, no caso da economia brasileira, duas luzes de alerta estão acesas. Houve neste ano indícios de atividade superaquecida e o Banco Central do Brasil (BC) reagiu aumentando os juros básicos. Mas falta cuidar do principal fator de risco: a rápida expansão do gasto público. A advertência aparece em dois diferentes capítulos do novo Panorama Econômico Mundial, recém-divulgado pelo FMI.

ESSE Panorama é produzido por uma equipe de economistas muito bem informada sobre as condições de cada região e de cada país. Segundo o documento, um maior número de países da AL está em rápida recuperação por não ter cometido excessos na fase pré-crise econômica internacional. A convalescença do mundo rico é mais lenta porque parte dos excessos - como o endividamento das famílias norte-americanas - ainda está sendo digerida. A análise, no entanto, é realista. Com algumas exceções, os latino-americanos estão relativamente bem, mas não é hora de relaxar. Um aperto fiscal ajudará a conter pressões inflacionárias (casos do Peru e do Uruguai), a combater a valorização cambial (caso do Brasil), a reduzir a dívida pública e a criar um colchão de segurança para emergências.

ESTE relatório chama a atenção para um detalhe quase sempre ignorado nas discussões sobre o câmbio. As maiores economias da AL, como outras emergentes, têm atraído grandes volumes de capital estrangeiro e isso tem forçado a valorização de suas moedas, encarecendo seus produtos e tornando suas empresas menos competitivas. Esses dados são bem conhecidos. Mas há uma particularidade no caso brasileiro: um dos grandes atrativos para o investidor estrangeiro, a taxa de juros muito alta, tem relação com o excesso de gastos públicos. Os juros poderiam ser mais baixos, se o governo contivesse as suas despesas, e isso poderia ajudar a conter o ingresso de moeda estrangeira e, por consequência, a valorização do real.

ESSE Panorama apenas menciona rapidamente esse ponto. A relação entre orçamento público, taxa de juros e câmbio foi apontada com todas as letras na entrevista coletiva, numa intervenção da economista Petya Koeva Brooks, chefe da Divisão de Estudos Econômicos do FMI. Tudo isso é discutido com frequência no Brasil.

GUIDO Mantega, tem denunciado com insistência uma guerra cambial entre as maiores potências. Em sua descrição, o Brasil seria uma vítima circunstancial desse tiroteio. Esse quadro contém apenas uma parte dos fatos importantes. Há, realmente, uma desordem cambial na maior parte do mundo. Resulta principalmente da insistência chinesa em manter o yuan subvalorizado e da inundação de dólares promovida pelas autoridades americanas. O resto do mundo reage como pode. Mas o Brasil não é apenas uma vítima desprevenida, forçada a proteger-se com a compra de montanhas de dólares e com a imposição de uma barreira fiscal ao capital especulativo. Há mais que isso.

O GOVERNO brasileiro aumenta o próprio risco por causa da política fiscal irresponsável e do peso excessivo jogado sobre a política monetária. O problema cambial não seria eliminado se o governo adotasse uma orientação mais prudente, porque a desordem é global. Mas o custo para o Brasil seria provavelmente menor, porque o País ficaria menos vulnerável ao tiroteio.

NOSSAS autoridades monetárias já tentaram conter a valorização cambial comprando enorme volume de dólares. Impuseram uma barreira tributária ao ingresso de capital estrangeiro. A medida foi insuficiente e o imposto foi aumentado e concentrado num tipo de fluxo, aquele destinado a papéis de renda fixa. Talvez a nova iniciativa produza algum resultado. Só não se tentou, até agora, a solução mais prudente e mais favorável à preservação da saúde econômica: um pouco mais de responsabilidade fiscal.

AGORA a realização do segundo turno nas eleições presidenciais deve favorecer o debate econômico. Definida a eleição para o Poder Legislativo e, ainda em 17 importantes Estados da Federação, para governadores, isso vai ampliar o foco nas eleições presidenciais e abrir espaço para uma discussão mais aprofundada, especialmente dos problemas econômicos e das alternativas de políticas públicas.

A SOLIDEZ da base macroeconômica, que combina uma economia em crescimento com inflação controlada, contas públicas administradas e o conforto de um nível recorde de reservas, tem sido importante fator para a calmaria observada no mercado, ao contrário de eleições passadas. Também há um claro amadurecimento do processo democrático, denotado por perfis de candidaturas que representam partidos e coligações com experiência executiva, o que tende a minimizar o fator incerteza.

ENTRETANTO, se há estes progressos evidentes, isso não quer dizer que não haja problemas a serem enfrentados na área macroeconômica. Muito pelo contrário, a sustentabilidade do quadro atual somente será viabilizada com mudanças profundas. A falta de "senso de urgência" para as grandes questões tem levado a certa letargia do debate eleitoral. Temos uma nova oportunidade de aprofundar o debate e essa questão não se deve restringir aos candidatos e partidos. As entidades representativas da sociedade, assim como a mídia e a Imprensa independente, devem provocar e estimular mais a discussão dos grandes temas nacionais, assim como as alternativas de políticas.

NO que se refere à macroeconomia, embora seja inegável a contribuição do "tripé" superávit fiscal primário, sistema de metas de inflação e regime de câmbio flutuante, que está completando 12 anos de implementação, ainda há muito a ser alterado ou aperfeiçoado. A mudança é mais de ordem qualitativa, mas isso vai exigir a tomada de decisões, sob o risco de a inércia nos levar a uma crise em futuro próximo.

A QUESTÃO fundamental é ampliar o investimento em infraestrutura e capacidade produtiva para sustentar o crescimento econômico futuro. Isso somente será viável com uma mudança profunda na política econômica. O Brasil enfrentou bem os desafios impostos pela maior crise da economia internacional desde a grande depressão dos anos 1930.

ISSO foi possível, primeiro, porque a economia brasileira diminuiu significativamente a sua histórica dependência externa de petróleo e recursos financeiros e, segundo, porque pôde contar com e soube utilizar o peso dos bancos públicos e das empresas estatais para implementar medidas que compensaram a queda da demanda internacional, assim como a carência de crédito.

NO entanto, apesar desse reconhecimento, há uma acomodação no que se refere à política monetária, excessivamente calcada nos juros elevados, e uma política cambial ainda muito passiva. Ambos os aspectos combinados propiciam um verdadeiro paraíso para arbitragem especulativa no Brasil, em meio a um quadro internacional de baixas taxas de juros e de "guerra cambial".

PARA o sistema produtivo se trata de uma combinação catastrófica, por atrofiar o investimento, desestimular as exportações de maior valor agregado e subsidiar importações. Não apenas de maquinário e matérias-primas, como alegam alguns, mas de uma série de produtos que acabam substituindo produção, emprego, renda e tributos locais.

A CONSEQUÊNCIA de tudo isso é que estamos diante de um processo gradual de desindustrialização e um crescente déficit em conta corrente do balanço de pagamentos, que deve atingir US$ 50 bilhões este ano e dobrar em alguns anos, se não houver mudança na política econômica. O que não se restringe exclusivamente à política cambial, mas precisa ser respaldado nas políticas monetária e fiscal. Não estamos diante de uma tarefa fácil, mas de uma tarefa cuja resolução será menos custosa se houver determinação.