Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

segunda-feira, março 22, 2010

Parados no tempo e com os olhos e ouvidos (seletivamente) fechados

UMA TAL teoria do "novo olhar" é o último recurso retórico da diplomacia brasileira. Algo assim: por não ter interesses estratégicos, militares e econômicos que restringiriam o seu campo de visão diante do impasse israelense-palestino, o Brasil, ao contrário das grandes potências, estaria em condições de focalizar de uma perspectiva original os obstáculos à paz no Oriente Médio e os caminhos para superá-los. Não se pergunte, para poupar do constrangimento os autores dessa tese fabulosa, no que consistiriam as descobertas brasileiras em relação ao mais esquadrinhado dos conflitos internacionais. Mas é impossível deixar de contrastar o pretenso novo olhar daquela turma do Itamaraty sobre o Levante com o seu velho e embaçado olhar - este sim, absolutamente real - sobre as violações dos direitos humanos no mundo.

NO ÂMBITO daOrganização das Nações Unidas (ONU) - o foro apropriado para essas questões -, o comportamento do Brasil é o que há de mais anacrônico. Embora a proteção da pessoa contra a violência do Estado equivalha a uma cláusula pétrea da Carta da ONU, concebida quando ainda fumegavam os fornos crematórios do nazismo, a guerra fria tornou praticamente inócuas as prescrições humanitárias do documento. Do alto de seu poder de veto no Conselho de Segurança da ONU, Estados Unidos da América (EUA) e a (então) União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) bloqueavam todas as tentativas de sancionar os crimes dos respectivos governos aliados (quando não os próprios, no caso da URSS) enquanto travavam batalhas retóricas que apenas serviam para entravar a causa dos direitos humanos. Com a queda do Muro de Berlim em 1989, no entanto, essa causa assomou na agenda internacional.

E AVANÇOU-SE bem menos do que ainda há para avançar. Ainda assim, os países tendem a ser cada vez mais avaliados pelo seu desempenho nessa matéria e pelas suas posições nas instituições multilaterais que dela se ocupam, a começar do Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra. Ali, o retrospecto brasileiro é de quem parou no tempo de olhos fechados (ou seletivamente abertos). A pretexto de evitar a "politização" dos debates, a representação brasileira se recusa a apoiar os esforços de outros governos e de Organizações Não-Governamentais (ONGs) humanitárias para condenar violações notórias em países como Cuba, Irã, Coreia do Norte, Sudão, Congo, Mianmar e Sri Lanka, por exemplo. Os acusados, sustenta aquela turma do Itamaraty, devem ser livres para aceitar ou não as "recomendações" da ONU, e ao Brasil não cabe criticar países específicos.

E DEPOIS que o vosso presidente da República, Luiz Inácio da Silva (PT-SP), comparou, outro dia, os dissidentes cubanos encarcerados a presos comuns, não será o Itamaraty que apoiará em Genebra uma resolução da Noruega, contra a qual Cuba é a primeira a se opor, para que os governos deixem de chamar de terroristas os seus prisioneiros políticos. Em relação ao regime homicida do iraniano Mahmoud Ahmadinejad, o máximo que o governo brasileiro se permitiu foi declarar-se "preocupado" com a situação dos direitos humanos no país e sugerir mudanças. A posição oficial é de "encorajar" o governo do Irã a manter "um diálogo respeitoso com grupos políticos e sociais diferentes". Abrir uma investigação sobre os crimes de Teerã, como defendem países europeus, nem pensar. O negociador-chefe iraniano em Genebra ficou "satisfeito" com a atitude brasileira. Cedo ou tarde, isso dá em desmoralização.

EM 2099, quando se preparava para abrir uma embaixada na Coreia do Norte, o governo do Brasil se absteve na ONU diante de uma proposta de resolução que condenava as violações "endêmicas" dos direitos humanos no país. Era preciso dar-lhe "uma chance", argumentou o Itamaraty. Esta semana, o ditador coreano, Pyongyang, rejeitou todas as sugestões do Brasil e de outros países para promover a melhora dos direitos dos seus desafortunados cidadãos. (Ainda há pouco, por sinal, um tecnocrata de 77 anos foi fuzilado por "arruinar a economia" com a reforma monetária que implantou em novembro.) O mais bárbaro dos regimes ditatoriais do globo simplesmente se recusou a acabar com a tortura, trabalhos forçados, pena de morte - pedido específico do governo brasileiro - e rejeitou a ida de um enviado da ONU.

TODOS os porta-vozes de movimentos de defesa dos direitos humanos manifestaram a esperança de que a fracassada tentativa abra os olhos da diplomacia brasileira. É mais do que tempo.