Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, outubro 09, 2011

Cheiro ruim

AO inaugurar o seu segundo período de governo, em Janeiro do ano passado, o primeiro ato do presidente da República da Bolívia, Evo Morales, foi consagrar a transformação daquele país em Estado Plurinacional, conforme previa a Constituição Federal da Bolívia que ele fizera redigir, aprovar e ratificar no ano anterior. A nova Magna Carta boliviana conferiu poderes políticos sem precedentes aos 36 grupos indígenas que somam 2/3 da população nacional de 10 milhões de habitantes - o Congresso Nacional, por exemplo, passou a se chamar Assembleia Plurinacional e a sua composição deve refletir esse perfil multiétnico. Além disso, as "nações" foram dotadas de autonomia também inédita em assuntos locais, em um complicado enlace com os órgãos de governo dos 9 departamentos, 112 províncias, 327 municípios e 1.384 cantões que compõem a geografia política do país vizinho.

PORTANTO, em tese as comunidades que vivem na reserva do Parque Nacional e Território Indígena Isiboro-Sécure (Tipnis), na Amazônia Boliviana, deveriam ter sido ouvidas sobre o projeto, anunciado há dois anos pelo governo boliviano, de construir uma estrada de 306 quilômetros ligando San Ignacio dos Moxos, no Departamento nortista de Beni, a Vila Tunari, no Departamento de Cochabamba, no centro do país. O traçado atravessa a área protegida, afetando os seus recursos naturais e os meios de subsistência da maioria de seus habitantes. Estes suspeitam de que por trás da obra de US$ 415 milhões, dos quais US$ 322 milhões financiados pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) do Brasil, a cargo da empreiteira brasileira OAS, está a intenção do ex-líder sindical cocalero Evo Morales de facilitar a atividade dos plantadores de papola da região, pouco preocupados, aliás, com o meio ambiente.

NO último dia 15 de Agosto, com a construção já começada, os indígenas contrários ao empreendimento iniciaram uma pacífica marcha de protesto para La Paz, onde esperavam chegar em fins de setembro, no que deveria ser o coroamento de um movimento de opinião pública pela paralisação dos trabalhos. A pressão se beneficiaria da queda da popularidade de Evo, reduzida a 30%, pela frustração com a alta dos preços e a perpetuação dos níveis de pobreza no país, desmentindo as promessas do líder populista, aliado do coronel venezuelano Hugo Chávez. Contra esse pano de fundo, a mando de uma autoridade ainda não identificada, 400 policiais militares investiram no Domingo, 02, contra os participantes da marcha.

USARAM cassetetes, bombas de gás, armas de fogo. Ninguém morreu, mas houve dezenas de feridos e crianças desaparecidas em meio ao pânico. Estilhaços da violência policial atingiram em cheio o governo. Os ministros de Estado da Defesa e do Interior denunciaram a violência e renunciaram. Evo pediu desculpas à população e criou uma comissão, com participação da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para apontar os responsáveis pela explosão de truculência - que marcará a história de Evo, que sempre se apresentou como paladino da luta contra a secular opressão dos indígenas bolivianos. Para pôr panos quentes na crise, a Assembleia Plurinacional, controlada pelo MAS, o partido do presidente, foi incumbida de convocar um referendo sobre a estrada.

NÃO está claro se votarão apenas os moradores da área afetada ou também os eleitores dos departamentos beneficiados. Se estes puderem votar estará criada uma causa potencial de novos conflitos políticos. De toda forma, os indígenas de Tipnis não se opõem à ideia. Com a obra já em andamento (embora suspensa desde o fatídico Domingo), não faz sentido, argumentam, promover uma consulta pública sobre a sua execução. Os críticos mais radicais veem o "imperialismo brasileiro" na obra apoiada pelo BNDES por decisão do então presidente da República, Luiz Inácio da Silva (PT-SP), executada por uma construtora que ajudou a financiar as campanhas eleitorais para a Presidência da República de ambos os lados da fronteira e que estaria sobrefaturando o serviço. O Brasil está certo ao se distanciar do novo ciclo de tensões na Bolívia, que pode desembocar sabe-se lá no que.