Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, setembro 05, 2010

Autarquia controlada por facínoras e deliquentes

RIO DE JANEIRO (RJ) - CURIOSO é o mínimo que podemos disser de um órgão público do porte da Secretaria de Receita Federal do Brasil (SRF). Sua fiscalização trata com implacável rigor o contribuinte, tido por definição como um sonegador em potencial a quem incumbe provar, obedecendo a exigências não raro bizantinas, que está com a sua vida fiscal em ordem. Ao mesmo tempo, para se autoconceder um atestado de inocência política, não se vexa de alegar que o vazamento das declarações de renda de pessoas ligadas ao candidato oposicionista à Presidência da República, José Serra (PSDB-SP), se explicaria pelos indícios de existência de "um balcão de compra e venda de dados sigilosos", na delegacia do Fisco em Mauá, na Região Metropolitana de São Paulo, com vítimas a granel.

A AFIRMAÇÃO é do corregedor-geral do órgão, Antônio Carlos D"Ávila. Ele ecoou a posição do secretário da Receita Federal, Otacílio Cartaxo (PT-PE), que disse não acreditar que tenha havido "fins específicos de natureza político-partidária" na devassa dos dados dos correligionários, amigos e familiares do ex-governador do Estado e ex-prefeito municipal de São Paulo, JośeSerra, em Outubro do ano passado. Tanto assim que, na mesma época e na mesma repartição pública, 140 outros contribuintes, entre eles os fundadores da empresa Casas Bahia, a família Klein, e a apresentadora da TV Globo, Ana Maria Braga, também tiveram os seus registros vasculhados em 320 acessos - dos quais 206 nos computadores de apenas duas servidoras públicas do órgão. Destes, 151 não se justificariam.

COM a finalidade de jogar areia nos olhos do grande público e desmoralizar a denúncia de que Serra foi alvo de uma torpeza com intuitos eleitorais - numa repetição do golpe dos “aloprados” na campanha eleitoral de 2006, que também o visava -, a cúpula da Receita Federal preferiu se expor à desmoralização, ao mostrar como são porosas as barreiras do outro lado dos seus ávidos guichês que deveriam proteger a privacidade dos cidadãos da bisbilhotice dos próprios servidores públicos. Acionados a toque de caixa pelo governo Luiz Inácio da Silva (2003-10), inquieto com a frouxidão das suas reações ao escândalo, os hierarcas do Fisco subitamente encontram a verdade que, na versão anterior, demandaria exaustiva investigação.

NA verdade essa história se desenrola há três meses. Em Maio último, a reportagem da Revista Veja (Editora Abril) informou que operadores da candidatura governista Dilma Rousseff (PT-RS) à Presidência da República tratavam de montar um dossiê com evidências comprometedoras para o seu adversário. Aquela notícia custou a o cargo do engajado jornalista que cuidava da assessoria de imprensa da campanha petista - y de otras cositas más. Em Julho último, a reportagem do Jornal Folha de S.Paulo revelou que um setor da equipe da candidata Rousseff estava de posse de cópias de declarações de renda do vice-presidente do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), o engenheiro e advogado Eduardo Jorge Caldas Pereira (PSDB-SP). Na semana passada, enfim, a reportagem do Jornal O Estado de S. Paulo (o Estadão) adiantou que, segundo apurou a Corregedoria-Geral da SRF, foi também violado o sigilo de outros colaboradores da candidatura oposicionista à Presidência da República.

SALTA aos olhos a quem o golpe sujo poderia interessar. A alegação dos atuais responsáveis pela administração da Receita Federal do País, que menciona o comércio de informações confidenciais com "pagamento de propina", em nada altera a substância dos fatos. Os dados passíveis eventualmente de servir de munição à campanha da candidata Dilma Rousseff podem ter sido oferecidos ou procurados, contra pagamento ou de favor. Em qualquer das hipóteses, a mercadoria chegou ao destino. O acesso a declarações de renda de terceiros - de muitos terceiros, a julgar pelo material clandestino que se vende em plena rua Santa Efigênia, na Região Central da Cidade de São Paulo - é uma história à parte. Não tem que ver com a disputa pela Presidência da República nas eleições de Outubro próximo.

CONTUDO, o que estarrece na série de ilícitos com essa ou aquela intenção é a facilidade com que podem ser cometidos nas tumultuadas entranhas do órgão do Fisco brasileiro. Reportagem publicada no último Domingo, 29, no Jornal O Estado de S. Paulo, com base em depoimentos de analistas tributários e servidores ouvidos no inquérito sobre a violação dos dados fiscais do vice-presidente do PSDB, Eduardo Jorge, mostra como senhas individuais de acesso ao acervo de declarações armazenadas em computador passavam de mão em mão e ficavam anotadas em agendas ao alcance de todos quantos passassem pelas mesas dos colegas. "A segurança dos arquivos da Receita é como queijo suíço, com buraco para tudo", resume o advogado de uma das funcionárias investigadas.

E SE, causado por isso ou propiciado por isso, se formou no Fisco brasileiro "um balcão de compra e venda de dados sigilosos", é de perguntar o que o seu titular, Otacílio Cartaxo, espera para se demitir. Só não é preciso perguntar por que o vosso guia, Luiz Inácio da Silva (PT-SP) ainda não mandou o ministro de Estado da Fazenda, Guido Mantega (PT-SP), demiti-lo. 


E TAÍ: o procedimento dos interessados em ter acesso a declarações de renda da empresária Verônica Serra, filha do candidato do PSDB a Presidência da República, destoa do que, tudo indica, tenha sido o padrão seguido nas violações do sigilo fiscal de Eduardo Jorge Caldas Pereira, e de três outras pessoas ligadas a José Serra. Nesses episódios, para obter o que queriam, os predadores da intimidade alheia contavam com afinidades políticas ou a ganância de servidores da agência da SRF em Mauá – uma verdadeira da “mãe Joana”, com senhas individuais expostas e documentos eletrônicos ao alcance das vistas de qualquer um.

NESTE caso de Verônica Serra, que antecedeu os dos demais em cerca de uma semana (de 30 de Setembro a 08 de Outubro de 2009), o método seguido foi mais complicado na urdidura e mais simples no trâmite final. Alguém falsificou a assinatura da contribuinte - e o seu reconhecimento num cartório onde ela nem sequer tinha assento - numa solicitação de cópia de documentos e incumbiu um tipo que habita as cercanias do Código Penal Brasileiro (CPB), devidamente identificado no formulário, de apresentá-la à Delegacia da Receita Federal em Santo André (SP). Ali, burocraticamente, a servidora Lúcia de Fátima Gonçalves Milan fez o que lhe era pedido, repassando ao titular da procuração as declarações de Verônica Serra relativas aos exercícios de 2007 a 2009.

POR enquanto, pode-se apenas especular sobre os porquês das diferenças de estratagema. Mas o intuito era claramente o mesmo: recolher material que pudesse ser usado contra Serra na sua futura disputa com a escolhida do vosso guia, madame Rousseff. Àquela altura, no último trimestre de 2009, embora o então governador do Estado de São Paulo, José Serra, ainda se negasse a assumir a pretensão e o então governador do Estado de Minas Gerais, Aécio Neves da Cunha (PSDB-MG), e hoje candidato franco-favorito a uma cadeira no Senado Federal, ainda não tivesse largado mão da esperança de ser ele o candidato oposicionista, já não havia dúvidas sobre quais seriam os principais contendores da sucessão de vosso guia na Presidência da República deste grande e bobo País. E não passa pela cabeça de ninguém que a turma da pesada - aquela alcunhada de “os aloprados” do PT -, fosse esperar a formalização das candidaturas para só então juntar papelório que pudesse comprometer o candidato peessedebista e seus aliados.

PARA dizer o mínimo, seria subestimar a capacidade de iniciativa do "setor de inteligência" petista, como viria a ser conhecido. Principalmente porque os responsáveis pelo trabalho sujo não precisariam gastar tempo e energia para preparar o terreno por excelência de onde escavariam a matéria-prima desejada. O campo da Receita Federal começou a ser aplainado para servir aos interesses do petismo quando, em 31 de Julho de 2008, o ministro da Fazenda, Guido Mantega, demitiu o então secretário do órgão, Jorge Rachid, há 5 anos e meio no cargo. Desde então, a isenção e o profissionalismo deram lugar ao aparelhamento e à politização das decisões do Fisco. É o que atesta este escândalo das quebras de sigilo para fins eleitorais.

DESDE a denúncia, a SRF levou praticamente duas semanas até anunciar a abertura de inquérito administrativo sobre o vazamento de declarações de renda de Eduardo Jorge, cópias das quais apareceram em mãos de membros do comitê nacional da campanha presidencial de madame Rousseff. Depois, quando vieram a público as demais violações, depois que a Justiça autorizou o vice-presidente do PSDB a ter acesso aos autos da investigação, os hierarcas da Receita Federal, acionados pelo staff do Palácio do Planalto, correram a desvincular da campanha eleitoral governista os ilícitos revelados. Afinal, disseram sem enrubescer, o que havia na agência da Receita em Mauá era um "balcão de compra e venda de dados sigilosos", movido a "propina".

E DE fato, não que não fosse - outros 140 registros também foram vasculhados ali. Se tivesse um pingo de vergonha na cara, aliás, o secretário Otacílio Cartaxo já teria se demitido. Eis, em suma, o que o lullismo e a cultura petista fizeram do Fisco brasileiro: uma repartição em que o livre tráfico de informações presumivelmente seguras sobre os contribuintes brasileiros se entrelaça com o uso da máquina, literalmente, para intuitos eleitorais torpes. O crime comum e o crime político se complementam. Agora, destampada a devassa nas declarações de renda de Verônica Serra, vem “O-CARA!” falar em "bandidagem". Se quiser saber quem é o responsável último por essa degenerescência, basta se olhar no espelho.