Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

quarta-feira, abril 21, 2010

A cúpula sem agenda

INEXISTE um bom enredo para os quatro atores que se apresentaram, esta semana, em Brasília (DF), na reunião de cúpula Bric (bloco formado por Brasil, Rússia, Índia e China). Só o vosso presidente da República, Luiz Inácio da Silva (PT-SP), parece acreditar numa importante convergência de interesses dos quatro grandes emergentes, a ponto de poderem atuar em conjunto na cena internacional. Mas essa crença não foi confirmada até agora. Na área comercial o fato mais notável, nos últimos tempos, foi a aproximação da China com os países latino-americanos, onde os produtos chineses têm tomado o lugar não só dos norte-americanos, mas também dos manufaturados brasileiros.

ESSA conferência de Brasília foi o segundo encontro de chefes de governo dos quatro países. O primeiro ocorreu em Junho de 2009, na Rússia, e nada produziu de notável. "Com a Índia temos pelo menos alguma cooperação na esfera técnico-militar, mas é difícil imaginar o que podemos querer do Brasil", escreveu na ocasião o analista político Mikhail Vinogradov.

UM ANO depois, o Bric continua longe de formar um bloco ou uma frente diplomática, apesar da intensificação dos contatos entre representantes governamentais. Em 2009, os ministros das Finanças dos quatro países combinaram contribuir para o reforço financeiro do Fundo Monetário Internacional (FMI), juntando-se ao movimento iniciado pelos governos do mundo rico. O ministro de Estado da Fazenda, Guido Mantega (PT-SP), funcionou como porta-voz do grupo, trombeteando condições para o empréstimo. Nenhum outro ministro apareceu em público para repetir as bravatas do colega brasileiro.

E A PAUTA definida para a reunião em Brasília incluiu os itens mais previsíveis: o quadro econômico mundial, a regulação do sistema financeiro, a reforma do FMI e do Banco Mundial (Bird) e a polêmica sobre o programa nuclear do Irã.
RÚSSIA, China e Índia têm muito mais peso que o Brasil nas questões de segurança global. As duas primeiras têm arsenais nucleares e são membros permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU). A terceira também tem armas atômicas e um papel importante no jogo estratégico regional. O Brasil não tem nenhum desses atributos, mas seu governo é o mais barulhento no debate sobre o programa nuclear do Irã. Se Brasília tem interesse estratégico nesse caso, certamente não coincide com os objetivos dos outros três.

ÍNDIA, Rússia e China têm ambições bem definidas de ocupar espaços crescentes na economia e na política internacionais. Essas ambições são projetos nacionais e não se subordinam a nenhuma fantasia terceiro-mundista. Nenhum de seus governantes atribui prioridade a relações comerciais do tipo Sul-Sul nem se dispõe a participar de movimentos para reformar a ordem global. Podem até usar essa linguagem, de acordo com a ocasião, mas cada qual age de fato em vista de objetivos nacionais. Nenhum deles tomou a iniciativa de converter em bloco a sigla Bric, inventada em 2001 por um economista do banco de investimentos Goldman Sachs.

O ATUAL projeto do governo chinês inclui a conquista de mercados na África e na América Latina (AL). Inclui também a realização de acordos e de investimentos para garantir o suprimento de matérias-primas e bens intermediários produzidos nessas áreas. Isso não tem a mínima correspondência com qualquer aliança estratégica imaginada e alardeada pelo governo brasileiro. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), até 2014 a China tomará da União Europeia (UE) o posto de segundo mercado de destino das exportações latino-americanas, ficando pouco abaixo dos Estados Unidos da América (EUA). Mas será também a segunda maior fonte de produtos importados pela região. Nos dois casos, tomará espaço dos EUA, mas também deslocará o Brasil.

TAL DESLOCAMENTO já ocorre até no interior do Mercosul onde produtores chineses tomaram espaço de brasileiros, competindo, em muitos casos, de forma bem pouco transparente. O governo brasileiro teria, se quisesse, motivos excelentes para rediscutir a relação com a China. E por que não com a Rússia, onde as carnes brasileiras têm sido discriminadas em favor das europeias e norte-americanas? Mas para isso não seria preciso fantasiar sobre o Bric nem promover tertúlias de cúpula quase sem agenda.

SE RECEBESSE honorários por desempenho, “O-CARA!” poderia apresentar uma alentada fatura ao seu homólogo iraniano Ahmadinejad pelos extenuantes serviços de advocacia que lhe prestou nos últimos dias. Desacreditando a própria versão oficial de que a intenção do governo brasileiro era mediar o conflito sobre o programa nuclear do Irã, Luiz Inácio da Silva se comportou como patrono de Teerã nas suas reuniões bilaterais com os líderes estrangeiros vindos a Brasília.

O LÍDER chinês Hu Jintao, o líder indiano Manmohan Singh, o líder russo Dmitri Medvedev e o líder sul-africano Jacob Zuma ouviram dele o que ouviriam de Ahmadinejad: que a adoção, pelo Conselho de Segurança da ONU, de uma nova rodada de sanções contra o Irã, buscada pelos EUA e a UE, seria inútil ou contraproducente, e que o diálogo é a única via para o país prosseguir com o programa nuclear a que tem direito e a comunidade internacional se convencer dos seus fins pacíficos. Na véspera, de volta da Cúpula de Segurança Nuclear, em Washington (DC), “O-CARA!” já havia criticado abertamente o presidente da República dos EUA, Barack Obama. "O que acho grave é que ele até agora não conversou com o Irã", acusou. Na realidade, o sexteto formado pelos EUA, Alemanha, Grã-Bretanha, França, Rússia e China vinha conversando intermitentemente com a República Islâmica, sem resultados. “O-CARA!”, que visitará Teerã daqui a um mês, temperou a sua defesa da posição iraniana com o reparo de que o país "tem de ser mais transparente para mostrar que a finalidade de seu programa é pacífica". Pelo visto, ele acredita nas intenções declaradas do Irã: o problema estaria apenas na sua opacidade. Como se isso não fosse indício veemente de seus planos para, no mínimo, chegar ao limiar da produção da bomba.

LUIZ Inácio da Silva tem afirmado que em 2003 o mundo foi induzido a crer que o Iraque tinha armas de destruição em massa - e que isso não pode se repetir com o Irã. O fato é que Saddam Houssein agia como se as tivesse, ao passo que Ahmadinejad age como se não quisesse tê-las. “O-CARA!” também anunciou que falará "olho no olho" com Ahmadinejad "e, se ele disser que vai construir (a bomba), vai arcar com as consequências do seu gesto". Só mesmo a sideral soberba do vosso presidente da República para levá-lo a imaginar que o seu anfitrião poderá se confessar com ele. Saindo do terreno da galhofa, o que o Brasil propõe é ressuscitar as negociações sobre a troca de urânio iraniano enriquecido a 3% pelo equivalente russo e francês de 20% de teor, para a produção de isótopos de uso medicinal.

TAL idéia, discutida em Outubro último na Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA), visava a reduzir os estoques iranianos de material passível de enriquecimento a 90%, necessário para a bomba. A tentativa de testar a boa-fé do Irã gorou quando Ahmadinejad exigiu que a troca fosse simultânea, o que a tornaria inócua para o objetivo desejado.

ESTA foi a gota d’água para o governo dos EUA passarem a dar prioridade às sanções. Assim como as 3 anteriores, desde 2006, elas resultam das trapaças do Irã com a AIEA, sonegando informações requeridas e ocultando instalações e equipamentos sensíveis.

TODO o retrospecto, é bem verdade, indica que as punições de nada serviram - ou porque saíram aguadas do Conselho de Segurança da ONU, sobretudo por obra da China, ou porque foram desrespeitadas até por empresas norte-americanas. É incerto o efeito das próximas, se e quando forem aprovadas. Se forem robustas e receberem maciço apoio internacional, talvez levem os iranianos de volta à mesa, para uma negociação que poderia ser muito mais abrangente, como propõem especialistas em Oriente Médio e diplomatas - desde que o Irã deixe de pregar a destruição de Israel. A questão-chave é a posição da China, que mantém as suas cartas perto demais do peito para permitir prognósticos seguros do seu jogo.

O GOVERNO chinês reluta em punir o Irã que lhe vende 12% do seu petróleo e gás. Mas teria concordado em ao menos discutir as sanções com os outros membros do Conselho de Segurança da ONU. Eis uma atitude mais madura - ou mais esperta - do que a do Brasil, advogando para Teerã.