Pré-sal de afogadilho
NO COMPASSO em que os juristas se manifestam sobre os quatro Projetos de Lei (PL) enviados pelo Governo ao Congresso Nacional, destinados a estabelecer o arcabouço regulatório da exploração do petróleo na camada do pré-sal, percebe-se a fragilidade jurídica com que foram montados. E se destaca, nessa falta de solidez normativa, a incompatibilidade das propostas com o texto constitucional vigente, notadamente no que se refere à concessão de privilégios indevidos à Petrobrás S/A, ao desrespeito a princípios consagrados na Constituição Federal em favor da livre concorrência e da livre iniciativa, bem como no que diz respeito ao sistema de exploração do petróleo via partilha - já que concessão, autorização e permissão são os únicos meios constitucionalmente estabelecidos para o desenvolvimento dessa produção extrativa.
SEGUNDO o jurista Gastão Alves de Toledo, ao pretender destinar campos petrolíferos à companhia pública, sejam ou não da camada de pré-sal, em detrimento das demais empresas que operam no setor, o governo do vosso presidente da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP) desrespeita alguns dispositivos da Magna Carta, a começar pelo inciso II do artigo 173, que manda as empresas públicas e sociedades de economia mista se sujeitarem "ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários". Isso significa que qualquer empresa pública e/ou estatal, que explore atividade econômica - como a Petrobrás S/A -, está posta no mesmo plano de atuação de suas concorrentes, "sendo incabível o benefício aventado".
TOLEDO faz também referência ao artigo 37 da Constituição Federal para reter o mandamento contido em seu inciso XXI, prescrevendo que, na Administração Pública, as "obras, serviços, compras e alienações" se darão por meio de licitação, ressalvados os casos que a lei especifica. E aí argumenta: "Ora, a exceção legal que se intenta aplicar à Petrobrás não encontra justificativa jurídica ou fática que a legitime, sobretudo ao desprezar o princípio da isonomia, que ilumina todo o ordenamento jurídico e se constitui num dos pilares do Estado Democrático de Direito. Por isso, é inadmissível uma lei que dispense a União de licitar a outorga de direitos exploratórios a uma empresa governamental submetida, por força da Constituição, ao mesmo regime jurídico das empresas privadas, com as quais deve competir. Há, pois, flagrante discordância com ambos os preceitos, isto é, o que estabelece a igualdade de tratamento e o que exige licitação por parte dos órgãos públicos”. E na base da contestação desse privilégio está a valorização constitucional da livre concorrência (art. 170, IV) e da livre iniciativa (art. 170, caput), esta também acatada como um dos fundamentos da República (art. 1º, IV), ao lado dos valores sociais do trabalho.
OUTRO tópico que tem recebido contestação jurídica se refere ao sistema de exploração com partilha. O advogado Luiz Antonio Lemos, especialista na legislação do setor e que fez recente estudo para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) comparando as normas para a exploração de petróleo em 11 países produtores - entre os quais Arábia Saudita, México, Estados Unidos da América (EUA), Noruega, Venezuela e Rússia -, dá conta (em entrevista a nossa reportagem publicada pelo Jornal O GLOBO) de que a nossa Constituição Federal, em diversos momentos, cita as relações que o Estado pode ter com a iniciativa privada, onde estão a concessão, a autorização e a permissão, enfatizando: "Não há nada que se pareça com o que o governo está propondo, com o modelo de partilha. Mas o mais grave é que a leitura combinada dos artigos 176 e 177 da Constituição indica que a área de exploração de lavras e jazidas não só de petróleo, mas de riquezas minerais em geral, pode ser concedida e que o produto da exploração pertence à empresa privada. O artigo 176 é claro, o produto da lavra é da concessionária. Não é o que o governo quer com o modelo. Na partilha, o petróleo, mesmo depois de retirado da jazida, é da União, que depois remunera a empresa, pelos seus custos e por parte do lucro, em petróleo mesmo. É uma espécie de escambo de luxo", conclui.
COMO se vê, disputas judiciais se prevêem às mancheias, especialmente se o afogadilho da "urgência constitucional" não permitir - em 90 dias - que se altere, corrija e aperfeiçoe, a partir de amplo debate no Congresso Nacional e no seio da sociedade, o marco regulatório da exploração das reservas do pré-sal.
VISTO assim até parece que o presidente da Petrobrás S/A despacha no Gabinete da Presidência da República e atende pela alcunha de Luiz Inácio da Silva, o déspota. Esta conclusão é perfeitamente razoável depois de se ler a entrevista do diretor de Exploração e Produção da Petrobrás, Guilherme Estrela, publicada no início desta semana pela reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. Segundo o diretor, a empresa pública vai ajustar o ritmo de exploração do pré-sal à evolução da indústria nacional de equipamentos. A idéia é estimular a fabricação, no País, de bens de produção hoje importados - dezenas ou até centenas de equipamentos, de acordo com suas palavras. É missão da Petrobrás, afirmou o diretor Estrela, promover o desenvolvimento da indústria brasileira.
A NOSSA companhia pública de petróleo foi conhecida, até há bem pouco tempo, como grande companhia dedicada basicamente à exploração, à produção, ao transporte e à comercialização de petróleo, gás e derivados, no Brasil e no exterior. A venda de álcool foi uma ampliação de sua atividade comercial, mas não um desvio de seus objetivos como empresa do setor energético. Esta descrição é perfeitamente compatível com seu perfil de negócios, tal como apresentado até ontem à tarde da última Segunda-feira, 07, no site da Petrobrás S/A.
JAMAIS foi responsabilidade de aquela companhia pública subordinar sua atividade aos objetivos de uma política industrial de substituição de importações. Isso pode ter ocorrido em algumas fases, mas por imposição do governo e não porque a execução daquela política fosse parte de suas atribuições. A Petrobrás serviu, nos anos 1970, aos planos de desenvolvimento da petroquímica: foi um dos componentes do chamado tripé - capital estatal brasileiro, capital privado nacional e capital estrangeiro. Essa atividade ainda era compatível com uma empresa do setor energético. Mas - casualidade ou não - a Petrobrás só se transformou numa grande produtora de petróleo quando concentrou seus esforços e recursos nessa finalidade.
DE FATO talvez tenha havido mudança no perfil de negócios da empresa. Se isso ocorreu, só pode ter sido por decisão do acionista majoritário, representado pelo governo, ou por iniciativa dos dirigentes da companhia - hipótese muito menos provável. De toda forma, os acionistas minoritários não foram informados. Alguns deles talvez aprovem a conversão da Petrobrás em instrumento de uma nova política de substituição de importações. Talvez aceitem condicionar a exploração da camada do pré-sal a essa tarefa, isto é, ao desenvolvimento de uma indústria de equipamentos para a atividade nas áreas descobertas há pouco tempo. Esses mesmos acionistas poderão admitir o aumento de custos e a conseqüente redução dos lucros durante anos.
E QUE deva ocorrer aumento de custos ninguém pode negar. Essa é uma das conseqüências normais da reserva de mercado - e às vezes não é a pior. Os fabricantes de bens de capital deveriam ser os primeiros a lembrar esse fato. Sua produção progrediu durante alguns anos, na época do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), mas o setor ficou atrasado quando se implantou a reserva de mercado para bens de informática.
SEGUNDO a diretoria da Petrobrás, é sua missão "atuar de forma segura e rentável, com responsabilidade social e ambiental, nos mercados nacional e internacional, fornecendo produtos e serviços adequados às necessidades dos clientes e contribuindo para o desenvolvimento do Brasil e dos países onde atua". A contribuição ao desenvolvimento, obviamente, deve ocorrer no desenvolvimento das atividades adequadas a seu perfil.
CASO o vosso presidente da República pretende redefinir a missão da nossa maior companhia, convém adotar os melhores procedimentos, comunicando a decisão aos acionistas e ao público em geral e indicando os custos da mudança. O governo também poderá extinguir o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, convertendo-o, talvez, em diretoria da Companhia Petrobrás S/A.
PORÉM o desacato aos acionistas é só um aspecto de um erro muito maior. Não tem sentido retomar as políticas de substituição de importações com reserva de mercado, a não ser para criar mais um instrumento espúrio de poder e mais um foco de corrupção. O setor de máquinas e equipamentos não é uma indústria nascente. Além disso, misturar objetivos, quando se trata de tarefas tão ambiciosas quanto à exploração do pré-sal e o desenvolvimento da indústria, é uma demonstração inequívoca de irresponsabilidade e de incompetência. Não há lado bom nessa idéia.
SEGUNDO o jurista Gastão Alves de Toledo, ao pretender destinar campos petrolíferos à companhia pública, sejam ou não da camada de pré-sal, em detrimento das demais empresas que operam no setor, o governo do vosso presidente da República Luiz Inácio da Silva (PT-SP) desrespeita alguns dispositivos da Magna Carta, a começar pelo inciso II do artigo 173, que manda as empresas públicas e sociedades de economia mista se sujeitarem "ao regime próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários". Isso significa que qualquer empresa pública e/ou estatal, que explore atividade econômica - como a Petrobrás S/A -, está posta no mesmo plano de atuação de suas concorrentes, "sendo incabível o benefício aventado".
TOLEDO faz também referência ao artigo 37 da Constituição Federal para reter o mandamento contido em seu inciso XXI, prescrevendo que, na Administração Pública, as "obras, serviços, compras e alienações" se darão por meio de licitação, ressalvados os casos que a lei especifica. E aí argumenta: "Ora, a exceção legal que se intenta aplicar à Petrobrás não encontra justificativa jurídica ou fática que a legitime, sobretudo ao desprezar o princípio da isonomia, que ilumina todo o ordenamento jurídico e se constitui num dos pilares do Estado Democrático de Direito. Por isso, é inadmissível uma lei que dispense a União de licitar a outorga de direitos exploratórios a uma empresa governamental submetida, por força da Constituição, ao mesmo regime jurídico das empresas privadas, com as quais deve competir. Há, pois, flagrante discordância com ambos os preceitos, isto é, o que estabelece a igualdade de tratamento e o que exige licitação por parte dos órgãos públicos”. E na base da contestação desse privilégio está a valorização constitucional da livre concorrência (art. 170, IV) e da livre iniciativa (art. 170, caput), esta também acatada como um dos fundamentos da República (art. 1º, IV), ao lado dos valores sociais do trabalho.
OUTRO tópico que tem recebido contestação jurídica se refere ao sistema de exploração com partilha. O advogado Luiz Antonio Lemos, especialista na legislação do setor e que fez recente estudo para o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) comparando as normas para a exploração de petróleo em 11 países produtores - entre os quais Arábia Saudita, México, Estados Unidos da América (EUA), Noruega, Venezuela e Rússia -, dá conta (em entrevista a nossa reportagem publicada pelo Jornal O GLOBO) de que a nossa Constituição Federal, em diversos momentos, cita as relações que o Estado pode ter com a iniciativa privada, onde estão a concessão, a autorização e a permissão, enfatizando: "Não há nada que se pareça com o que o governo está propondo, com o modelo de partilha. Mas o mais grave é que a leitura combinada dos artigos 176 e 177 da Constituição indica que a área de exploração de lavras e jazidas não só de petróleo, mas de riquezas minerais em geral, pode ser concedida e que o produto da exploração pertence à empresa privada. O artigo 176 é claro, o produto da lavra é da concessionária. Não é o que o governo quer com o modelo. Na partilha, o petróleo, mesmo depois de retirado da jazida, é da União, que depois remunera a empresa, pelos seus custos e por parte do lucro, em petróleo mesmo. É uma espécie de escambo de luxo", conclui.
COMO se vê, disputas judiciais se prevêem às mancheias, especialmente se o afogadilho da "urgência constitucional" não permitir - em 90 dias - que se altere, corrija e aperfeiçoe, a partir de amplo debate no Congresso Nacional e no seio da sociedade, o marco regulatório da exploração das reservas do pré-sal.
VISTO assim até parece que o presidente da Petrobrás S/A despacha no Gabinete da Presidência da República e atende pela alcunha de Luiz Inácio da Silva, o déspota. Esta conclusão é perfeitamente razoável depois de se ler a entrevista do diretor de Exploração e Produção da Petrobrás, Guilherme Estrela, publicada no início desta semana pela reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. Segundo o diretor, a empresa pública vai ajustar o ritmo de exploração do pré-sal à evolução da indústria nacional de equipamentos. A idéia é estimular a fabricação, no País, de bens de produção hoje importados - dezenas ou até centenas de equipamentos, de acordo com suas palavras. É missão da Petrobrás, afirmou o diretor Estrela, promover o desenvolvimento da indústria brasileira.
A NOSSA companhia pública de petróleo foi conhecida, até há bem pouco tempo, como grande companhia dedicada basicamente à exploração, à produção, ao transporte e à comercialização de petróleo, gás e derivados, no Brasil e no exterior. A venda de álcool foi uma ampliação de sua atividade comercial, mas não um desvio de seus objetivos como empresa do setor energético. Esta descrição é perfeitamente compatível com seu perfil de negócios, tal como apresentado até ontem à tarde da última Segunda-feira, 07, no site da Petrobrás S/A.
JAMAIS foi responsabilidade de aquela companhia pública subordinar sua atividade aos objetivos de uma política industrial de substituição de importações. Isso pode ter ocorrido em algumas fases, mas por imposição do governo e não porque a execução daquela política fosse parte de suas atribuições. A Petrobrás serviu, nos anos 1970, aos planos de desenvolvimento da petroquímica: foi um dos componentes do chamado tripé - capital estatal brasileiro, capital privado nacional e capital estrangeiro. Essa atividade ainda era compatível com uma empresa do setor energético. Mas - casualidade ou não - a Petrobrás só se transformou numa grande produtora de petróleo quando concentrou seus esforços e recursos nessa finalidade.
DE FATO talvez tenha havido mudança no perfil de negócios da empresa. Se isso ocorreu, só pode ter sido por decisão do acionista majoritário, representado pelo governo, ou por iniciativa dos dirigentes da companhia - hipótese muito menos provável. De toda forma, os acionistas minoritários não foram informados. Alguns deles talvez aprovem a conversão da Petrobrás em instrumento de uma nova política de substituição de importações. Talvez aceitem condicionar a exploração da camada do pré-sal a essa tarefa, isto é, ao desenvolvimento de uma indústria de equipamentos para a atividade nas áreas descobertas há pouco tempo. Esses mesmos acionistas poderão admitir o aumento de custos e a conseqüente redução dos lucros durante anos.
E QUE deva ocorrer aumento de custos ninguém pode negar. Essa é uma das conseqüências normais da reserva de mercado - e às vezes não é a pior. Os fabricantes de bens de capital deveriam ser os primeiros a lembrar esse fato. Sua produção progrediu durante alguns anos, na época do Segundo Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), mas o setor ficou atrasado quando se implantou a reserva de mercado para bens de informática.
SEGUNDO a diretoria da Petrobrás, é sua missão "atuar de forma segura e rentável, com responsabilidade social e ambiental, nos mercados nacional e internacional, fornecendo produtos e serviços adequados às necessidades dos clientes e contribuindo para o desenvolvimento do Brasil e dos países onde atua". A contribuição ao desenvolvimento, obviamente, deve ocorrer no desenvolvimento das atividades adequadas a seu perfil.
CASO o vosso presidente da República pretende redefinir a missão da nossa maior companhia, convém adotar os melhores procedimentos, comunicando a decisão aos acionistas e ao público em geral e indicando os custos da mudança. O governo também poderá extinguir o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, convertendo-o, talvez, em diretoria da Companhia Petrobrás S/A.
PORÉM o desacato aos acionistas é só um aspecto de um erro muito maior. Não tem sentido retomar as políticas de substituição de importações com reserva de mercado, a não ser para criar mais um instrumento espúrio de poder e mais um foco de corrupção. O setor de máquinas e equipamentos não é uma indústria nascente. Além disso, misturar objetivos, quando se trata de tarefas tão ambiciosas quanto à exploração do pré-sal e o desenvolvimento da indústria, é uma demonstração inequívoca de irresponsabilidade e de incompetência. Não há lado bom nessa idéia.
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