Notas do Pinheiro

Jornalismo Analítico

domingo, março 26, 2006

Poliglotas ou javaneses

WLADMIR ÁLVARO PINHEIRO JARDIM
BELO HORIZONTE


Eu tinha uns 12 pra 13 anos, e a minha tia, uma amiga casada com um norueguês. Certo dia, a tal ex-colega de trabalho se ofereceu para me trazer alguma coisa de Oslo. Nem pensei muito: “Quero um dicionário de norueguês”. Minha tia logo voltou com a reação da amiga: “Um dicionário de norueguês?! Ele não prefere uma mulher de lá, não?”

Não sei se era pergunta metafórica — na época, os escandinavos eram famosos por suas revistinhas de sacanagem — ou literal — e ela traficava escravas pálidas. Mantive-me firme no pedido que, vejo hoje, era a resignação precoce de que não se pode ter todas as mulheres do mundo. A esperança de falar todas as línguas do mundo, porém, de vez em quando ainda se manifesta. Semana passada, comprei um guia de conversação em quíchua.

Talvez relembrado da sobrevivência do idioma usado pelos incas (mas anterior a eles), com a eleição do índio Evo Morales presidente da República da Bolívia, eu vi o livrinho da editora Lonely Planet em um estande da 19a Bienal do Livro no Centro de Exposições do Anhembi em São Paulo e levei para casa. Não tenho entre meus planos imediatos o de visitar La Paz ou Cochabamba, nem muito menos quero dominar a língua falada por dez milhões de pessoas entre o Norte de Argentina e o Sul da Colômbia.

A relativa semelhança entre o quíchua intindinichu e o castelhano entiendo faz-me pensar se o verbo não estará entre as palavras que os conquistadores espanhóis impuseram aos índios. As saudações cotidianas correntes nos Andes são todas derivadas do idioma invasor. Bom dia, por exemplo, é wuynus diyas , de buenos dias. Você sabia? São coisas como essas, lindamente inúteis se não se estiver mascando folha de coca, que folheio.

Sei que logo o interesse arrefecerá, e o “Quechua phrasebook” irá para as estantes da minha biblioteca, fazer companhia a guias de conversação em japonês, holandês, grego e turco, a dicionários de catalão, irlandês, árabe, tailandês e turco, além do norueguês. Livrinhos assim não são somente ótimos suvenires de viagem. Um si us plau na Catalunha faz milagres. Lá, afinal, o castelhano por favor — como o de sua variante, o portunhol — é a língua do opressor. Livrinhos assim são realmente úteis para externar gentileza com os habitantes e respeito pela sua cultura. Ser monoglota é, em mais de um sentido, falta de educação.

Seis anos atrás, em Barcelona, eu e minha Ellen comíamos lulas e feijão branco, no amável Pinotxo, o estande 466 do mercado La Boqueria, nas Ramblas, quando chegou-se ao balcão um casal de norte-americanos. Não apenas eles só conseguiam se expressar em inglês como o faziam num tom de voz arrogante. Como o pobre Juanito se enrolava mais e mais, nós e um casal de jovens catalães entramos na conversa para ajudar. Quando notamos que, além do mais, os gringos desconfiavam da qualidade da comida, desistimos. Deveriam ter lido o jornal New York Times.

Antes daqueles meus 13 anos, eu já havia recortado da saudosa revista Manchete a lista de cento e tantas coisas que um aventureiro riquíssimo queria fazer na vida, tipo “escalar o Everest, o Kilimanjaro e o Monte Branco” ou “ser recebido para um chá pela rainha da Inglaterra” (como aconteceu ao vosso presidente-candidato Luiz Inácio da Silva, dias atrás) . O item que mais me fascinava, contudo, era “falar 20 idiomas” (ou número parecido). Tive esta meta. No mundo ideal, hoje estaria aprendendo árabe e/ou hebraico.

Neste mundo, fiz o que pude. Escolhi aprender a língua de Sheakspeare na Cultura Inglesa (unidade instalada ali naquela antiga casa rosa que ficava na Rua Fernandes Tourinho na vizinhança do Hospital ProntoCor do Bairro Funcionários) e cursei conversação no Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos (ICBEU) da Rua da Bahia, Lourdes, aqui mesmo em BH City. Li as revistas “El Gráfico” e “Guerin Sportivo” até decidir que sabia castelhano (com contribuições de uma e outra amante friulanas).

No entanto, tenho um problema com o francês. Leio o razoável, mas não consigo ter uma pronúncia aceitável, ao menos para os parisienses. Impossível entrar numa banca de jornais, pedir um “Magazine Litteraire” e não ser corrigido pelo jornaleiro numa entonação ou noutra. Saco. Um anglófono é incapaz de fazer isso: importa-lhe é que o estrangeiro fale. Um italianófono, dada a profusão de variantes regionais, também: se houver fluência, é mais provável até que ele identifique um dialeto inteiro num simples erro de pronúncia.

Encontrei consolo lendo “Juventude”, romance autobiográfico do sul-africano J.M. Coetzee, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura em 2003, alfabetizado em africânder e premiado pelo límpido inglês. Na página 84, falando das desventuras idiomático-sexuais de seu alter ego, Coetzee escreve: “(...) Ele não tem sensibilidade para o francês. Ao ouvir discos em língua francesa, não consegue, a maior parte do tempo, dizer onde termina uma palavra e começa a seguinte. Embora possa ler textos simples em prosa, não consegue ouvir com seu ouvido interno o som que possam ter. A língua resiste a ele, o exclui: não consegue encontrar uma entrada” (a tradução, para a Companhia das Letras, é de José Rubens Siqueira).

Ah, aquele velho dicionário norueguês-inglês-norueguês me foi de grande utilidade no ano passado. Dada a semelhança entre as línguas escandinavas, comprovei que o título do último álbum da banda islandesa Sigur Rós, o excelente “Takk...” significa “Obrigado...”.

É mesmo como sempre diz a minha mãe: quem guarda o que não presta sempre tem o que precisa.
Sábias palavras!