Trombadas e trombetas
Neste final de ano o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) vem descarregando números relativos aos últimos anos do governo do ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) que, cá pra nós, só fazem melhorar a imagem do antecessor do presidente Luiz Inácio da Silva (PT-SP). Recentemente, foi o Produto Interno Bruto (PIB) de 2002 que foi revisto para cima exatos 0,4%, isto é, um PIB inteiro do primeiro ano de governo Lula.
O mesmo se dá com o combate à fome, marketing preferencial do programa de governo do Partido dos Trabalhadores (PT). Pois a FAO (um braço da ONU que trata das necessidades alimentação e combate à fome no mundo) divulgou um relatório cheio de elogios ao Brasil, uma exceção de redução dos famintos num mundo onde o problema só faz aumentar.
O resultado foi tão bom que o líder do Governo, senador Tião Vianna (PT-AC), apressou-se a saudá-lo, sendo lembrado pelo senador José Jorge (PFL-PE), de que os números da FAO paravam em 2001, ou seja, abrangiam apenas o governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP).
Terça-feira, 02, foi a vez da divulgação de dados referentes à expectativa de vida dos brasileiros, relativa a 2002, que melhorou para 71 anos, acima da média mundial de 65,4 anos. O brasileiro ainda vive pouco, em relação aos países desenvolvidos como o Japão ou alguns da Europa como a Suécia, que têm expectativa de vida acima de 80 anos. Mas vem melhorando gradativamente.
O presidente da República Luiz Inácio da Silva, no entanto, está convencido de que dias melhores virão. E assim como já está com validade vencida a desculpa da "herança maldita", haverá o dia em que os números da economia não serão mais comparados, nem vistos como meras continuações da administraçaõ Fernando Henrique Cardoso. Serão só seus, para o bem ou para o mal.
O ministro de Estado da Educação Cristovam Buarque (PT-DF) garante que o novo sistema de avaliação do ensino superior que está propondo não tira os méritos do que foi implantado pelo ex-ministro Paulo Renato Souza (PSDB-SP), mas o aperfeiçoa. Buarque acha que seus críticos estão demonstrando um enorme apego ao passado. "Ninguém está vendo que eu estou acrescentando coisas, que não estou tirando nada?", diz ele. "Quem acha que o Provão é uma maravilha de Deus, terá o Provão", afirmou.
No último dia 03, o ministro foi à Comissão de Educação da Câmara dos Deputados com um documento de dez páginas em que explicou suas idéias. Amanhã, 04, Buarque envia o projeto de lei para o Gabinete Civil da Presidência da República. As idéias iniciais da comissão que montou para estudar o assunto já foram alteradas, mesmo assim, ficou a sensação de choque das declarações iniciais de que o Exame Nacional de Cursos (o Provão) seria extinto. O ministro garante que não, mas, ainda assim, há vários pontos de interrogação e um medo enorme de retrocesso.
O Exame não será feito todo ano em todas as escolas, nem por todos os alunos. E os alunos que se submeterão à prova serão escolhidos por amostragem e não universalmente, como era feito antes. "Quem não acredita em amostragem, não acredita em estatística. E quem critica o fato de ser feito só de três em três anos, não percebeu ainda que, atualmente, é feito em apenas trinta por cento dos cursos. É simplesmente impossível avaliar todos os 14.000 cursos todos os anos", diz Buarque.
O ex-ministro Paulo Renato Souza acha que não é necessariamente ruim fazer a prova por amostragem: "Desde que o aluno tenha esta nota registrada em seu currículo escolar. Isso fará com que ele se empenhe para fazer o melhor mostrando o quadro verdadeiro do ensino em sua escola", afirma.
Buarque diz que as faculdades atualmente fazem uma "malandragem": "Elas pagam cursinhos para alguns alunos e dispensam os demais das provas. Assim, conseguem bons conceitos".
O risco maior dessa mudança no formato da avaliação é uma redução da visibilidade do conceito. O ministro Buarque explica que serão feitas quatro avaliações, e a prova do aluno será apenas uma delas.
A rigor, sempre foi assim, e o ministro mesmo lembra isso no documento que levou ao Congresso Nacional. O governo anterior tinha, além da prova, o sistema de avaliação das condições de ensino que analisava também a qualificação dos professores, a qualidade das instalações e o projeto pedagógico.
Agora haverá ainda uma "avaliação de responsabilidade". "As empresas não estão todas com programas de responsabilidade social? Por isso, queremos que as universidades também tenham", disse o ministro.
Ponderei que esse movimento foi espontâneo, uma mudança de valores dentro das empresas. "Elas fazem isso porque têm incentivos fiscais, nós queremos dar incentivos educacionais. Uma escola de medicina terá um pontinho a mais se tiver residência no Nordeste, por exemplo. Terá um pontinho quem estiver formando mais profissionais requeridos pelo mercado. Terá um pontinho a mais a escola de agronomia cujo curso tiver ênfase nas culturas da região onde está a escola. Isso é para informar ao próprio mercado, porque há escolas de agronomia que se negam a formar alunos nas vocações agrícolas da região porque seus professores, formados nos Estados Unidos, têm outra qualificação ", afirma Buarque.
Seja como for, o importante é que cada item avaliado tenha sua nota em separado para que se saiba exatamente em cada ponto qual é o conceito que os avaliadores consideraram. Se ficar tudo diluído no tal índice que será criado aí, sem dúvida, será um retrocesso. O avanço se dá pelo aumento da transparência e não pela mistura de conceitos e critérios.
O debate sobre o Exame mostrou a consolidação de uma mudança importante implantada pelo ex-ministro Paulo Renato. O próprio texto do ministro Buarque, apesar de dizer que o exame já existia desde os anos 80 no Brasil, admite este salto na cultura da avaliação feita no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. O primeiro movimento da comissão formada pelo ministro sobre o assunto foi dizer que o Exame seria extinto. A reação foi forte e veio de todos os lados. Cristovam Buarque anda visivelmente irritado com as criticas que recebeu, acha exagerada a defesa do sistema anterior, mas admite que houve uma tendência ideológica no grupo que inicialmente sugeriu mudanças: "Cada comissão diz o que acha, mas eu disse, desde o começo, que o Provão não iria acabar. Ficaria e seria ampliado".
Todo processo pode ser alterado desde que seja para melhor. Em alguns pontos, ainda há dúvidas, como os conceitos subjetivos tirando a transparência das avaliações mais objetivas. Cabe ao ministro demonstrar ao Congresso Nacional e à sociedade brasileira que o sistema que pretende implantar é mesmo um avanço e não uma tentativa de alterar algo que estava dando certo apenas porque a idéia pertenceu ao governo anterior.
Os números da pesquisa do IBGE sobre expectativa de vida dos brasileiros revelam, mais que uma melhora dos nossos índices, os paradoxos da sociedade que estamos construindo. Aumentamos nossa esperança de vida ao nascer para 71 anos, mas estamos ainda longe de países que têm economias muito menores que a nossa, como Cuba e Chile (76,1 anos), Argentina (74,2 anos) e até mesmo Colômbia (72,2 anos), com todo o seu problema de violência.
A principal razão para a melhora é a drástica redução da mortalidade infantil, que nos últimos 20 anos caiu de 69 óbitos por cada mil crianças nascidas vivas para 28,4. Mesmo assim, estamos em posição literalmente medíocre entre os países do mundo.
A meta do Governo para 2007, de reduzir a mortalidade infantil em 11%, chegando a 24 óbitos por mil, não nos garante uma melhoria relativa contínua. Os mesmos países citados acima têm também um índice de mortalidade infantil menor que o nosso. Cuba tem índice de 6,5 crianças mortas por cada mil nascidas vivas, melhor que os Estados Unidos, cujo índice é de 7 crianças. O Chile tem 10,1 e a Argentina 16,6.
Mas o mais grave de todos os paradoxos é que nossa média de expectativa de vida não cresce mais por causa da violência urbana entre os jovens da faixa etária entre 15 e 24 anos. As principais causas de morte dos jovens no mundo são os acidentes de trânsito e homicídios, e a situação do Brasil no ranking mundial é simplesmente catastrófica.
Na terceira edição do Mapa da Violência, pesquisa realizada pela Unesco, quando se trata de homicídios e outras violências, o Brasil ocupa a 3 posição, só superado por Colômbia e Venezuela.
A situação nas capitais é dramática. Em 1980, no Rio de Janeiro, os homicídios de jovens entre 15 e 24 anos representavam 33,2% das mortes totais na capital. Em 2000, passou a representar 53,2%.
Em São Paulo, o índice era de 22,1% em 1980 e passou a 61,8% em 2000. A situação piorou em todas as capitais brasileiras, transformando-se em uma praga social: a média brasileira era de 14% em 80 e mais que dobrou, passando a ser de 35,1% em 2000.
Essa tragédia social faz com que o diretor-geral da Unesco no Brasil, o sociólogo Jorge Werthein, se pergunte: por que não há uma política nacional em relação aos jovens? Ele lembra que sempre que o governo estabelece um projeto nacional, os resultados acabam aparecendo. A redução da mortalidade infantil é um exemplo claro. A política de combate à Aids implementada pelo governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, tendo o ex-ministro de Estado de Saúde José (PSDB-SP) à frente, é outro exemplo de projeto nacional bem-sucedido.
Diante desse quadro de atrocidade, tem sentido focar a discussão na redução da idade para punição dos menores? Eles já estão sendo eliminados pelos subúrbios e periferias do país. Sempre que há uma comoção como a que provocou o brutal assassinato da estudante paulistana Liana Friendenbach e de seu namorado, a discussão começa pela pena de morte — que é defendida por pessoas tão díspares quanto a apresentadora Hebe Camargo (SBT) e o rabino Henry Sobel.
Embora os dois tenham se arrependido publicamente depois, fica a marca da vingança predominando no debate. Apesar de o presidente da República Luiz Inácio da Silva e o ministro de Estado da Justiça Márcio Thomaz Bastos terem se pronunciado prontamente contra a redução da idade, há poucos dias a Fundação Perseu Abramo, órgão de estudos ligado ao PT, apresentou uma pesquisa em que 70% da população apoiavam a medida. E com o agravante de que ela foi feita antes dos assassinatos que comoveram o País.
É compreensível a reação, inclusive porque, no caso do delinquente Champinha, ele é um reincidente que matou com requintes de crueldade. Mas é triste notar que a violência do dia-a-dia nos fez perder a capacidade de vislumbrar soluções que, mesmo utópicas, nasçam do desejo de recuperar esses jovens, em vez de apenas pensar na repressão.
Uma história acontecida no Rio de Janeiro há 40 anos pode servir de inspiração para mudar o rumo dessa discussão. O jornalista Odylo Costa perdeu seu filho, brutalmente assassinado por um Champinha da época. Foi o primeiro assassinato de um jovem da classe média por um menor delinqüente, e chocou a cidade.
Pois Costa, católico fervoroso, não apenas perdoou publicamente o assassino de seu filho, como começou uma cruzada nacional para criação de um organismo que substituísse o Serviço de Assistência ao Menor, o famigerado SAM, considerado na época uma fábrica de bandidos.
Nasceu assim a Fundação Nacional de Assistência ao Menor, sem verbas e já depois do golpe militar de 1964. Transformou-se com o tempo na famigerada Funabem, outra escola do crime, até que a Constituição de 1988 passou aos estados a tarefa de lidar com os menores infratores.
E, dois anos depois, nascia o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A tentativa de Odylo Costa não deu certo, mas sua origem foi generosa. Quem sabe não encontramos hoje caminhos diferentes da simples repressão para atacarmos essa tragédia nacional, e com melhores resultados?
O estado de São Paulo se mobiliza na tentativa de uma solução efetiva do problema. Além de trabalhar a parte repressiva, sugerindo alterações no ECA que permitam aumentar a pena dos menores criminosos, o governador do estado de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB-SP), está fazendo uma experiência nova, passando a Febem para a alçada da Secretaria de Estado da Educação de São Paulo (SEESP).
O secretário de Estado da Educação Gabriel Chalita (PSDB-SP) organizou um programa de empregabilidade dos internos, na expectativa de dar a esses jovens uma perspectiva de futuro que hoje simplesmente lhes é negada pela sociedade, que discrimina os jovens infratores.
Hoje já são 700 jovens trabalhando, e outros tantos sendo treinados para poderem assumir diversas funções em empresas que aderiram ao programa. Ao mesmo tempo, a SEESP está fazendo convênio com diversas fundações e Organizações Não Governamentais (ONGs), que vão assumir a administração das unidades da Febem, numa tentativa de acabar com os focos de banditismo que se enraízam nessas instituições.
São experiências no sentido da recuperação dos menores delinquentes e criminosos, que dão sentido ao debate e esperança de solução dessa verdadeira tragédia brasileira.
É possível que, passados o primeiro ano de Governo do PT e os primeiros impactos de uma mudança tão drástica de atitude política, ninguém mais perca tempo em procurar nas declarações antigas de seus membros as contradições do PT no Governo. Essas contradições, a partir de determinado momento, passarão a fazer parte do procedimento normal do partido e, portanto, a não mais existir como contradições.
Os dissidentes mais radicais, não necessariamente aqui identificados em termos críticos, mas radicais no sentido de intransigentes com seus princípios éticos, já não estarão fazendo parte do partido governista. Como a senadora Heloísa Helena (PT-AL) que, ao recusar publicamente um aceno conciliador sugerido pelo próprio presidente da República, encerrou de vez sua história no PT.
É sintomático que o presidente da República, ao ser abordado por seus correligionários que pediam uma anistia para Heloísa Helena, tenha dito que gostaria de vê-la na prefeitura municipal de Maceió (AL) para que aprendesse o que é ser Governo. Essa é, a meu ver, a chave para o entendimento das mudanças do PT no Governo e, ao mesmo tempo, a explicação para a inércia administrativa que foi a tônica desse primeiro ano de Governo.
A falta de experiência em administrações de grande porte, juntamente com um espírito voluntarista que parecia bastar para dar soluções a todos os problemas, forma a base para a verdadeira paralisia deste governo nesse primeiro quarto do mandato presidencial.
Os petistas estão cada vez menos desconfortáveis no papel de governistas, e já admitem que mudaram forçados pelas circunstâncias com que se depararam.
A votação da reforma da legislação previdenciária no Senado da República foi um marco nesse sentido. Não apenas pelo choro de duas senadoras que votaram a favor da reforma legislativa em lágrimas. Explicitando pela primeira vez publicamente, diante de uma galeria apinhada de servidores públicos hostis e de uma audiência nacional de TV e rádio, a dificuldade que tinham diante da necessidade de tomar uma atitude contraria a tudo que sempre defenderam.
Emblemático foi o voto do vice-presidente daquela Casa, senador Paulo Paim, que passou a semana anterior à votação ameaçando votar contra a reforma, mas conseguiu arranjar um pretexto para votar com o Governo, fingindo que mantinha sua posição original.
Também o discurso do senador Aloizio Mercadante (PT-SP), líder do Governo no Senado, não tendo pejo de lembrar os escritos de Max Weber e os mesmos argumentos usados pelo, então, presidente Fernando Henrique Cardoso para justificar suas reformas, é um marco na história política brasileira.
A ética da responsabilidade impõe-se aos governantes sem que eles possam reagir, desde, é claro, que não estejam dispostos a virar a mesa, como parece ser o caso do presidente da República Hugo Chávez na Venezuela, ou a senadora Heloísa Helena em Maceió.
Ou então, como acontece na Argentina, o país chega ao fundo do poço e, por absoluta falta de alternativa, tem possibilidade de rejeitar soluções por demais rígidas como única maneira, paradoxalmente, de se manter parte da comunidade internacional.
A bravata do presidente argentino com o Fundo Monetário Internacional (FMI) só se concretizou com absoluta conivência do próprio FMI, interessado em manter o país dentro das regras econômicas internacionais.
O presidente da República Luiz Inácio da Silva, frise-se, nunca fraquejou em suas convicções desde que assumiu o Governo. Ele sabia exatamente o que tinha pela frente, e deu ao ministro de Estado da Fazenda, Antonio Palocci Filho (PT-SP), total autonomia para executar a política econômica ortodoxa que vem sendo o ponto forte do governo para a comunidade internacional. E o ponto fraco com a esquerda do PT, ainda não convertida à ética da governabilidade.
Vai chegar um momento, porém, em que ele vai se deparar com o mesmo problema que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso teve que enfrentar: entregar a Palocci todo o comando da economia para terminar de vez com as ambigüidades que ainda persistem no governo.
O ex-presidente da República Fernando Henrique Cardoso, já no início de sua administração, optou pelo economista Pedro Malan no Ministério de Estado da Fazenda quando tinha o economista José Serra à frente do Ministério de Estado do Planejamento Orçamento e Gestão. O presidente Luiz Inácio da Silva terá que definir com mais clareza a prevalência de Palocci dando a ele, por exemplo, a possibilidade de nomear um técnico competente e de confiança para a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) urgentemente.
Mas, enquanto as mudanças dos petistas não transformam-se em banalidades, aqui e ali sempre surgem as comparações. Como agora que recuperaram do baú uma frase de Luiz Inácio da Silva em 1995, criticando o tamnho do barulho e o pouco gasto que o Comunidade Solidária havia feito naquele que foi o primeiro ano de governo Fernando Henrique Cardoso. A verba era simplesmente quatro vezes maior do que o orçamento contigenciado para o Programa Fome Zero neste primeiro ano de governo Lula. Os números, decididamente, não são favoráveis ao Governo Lula nos últimos dias.
PS: agora vem cá: trocar a nossa Escola de Samba Portela pela agremiação dos Gaviões da Fiel como representante do samba brasileiro nesta caravana rolidei presidencial às Arábias é tão esquisito quanto mandar "dois pastel" e "um chopes" do Rio de Janeiro para representar a gastronomia nacional lá fora. Com todo o respeito. (Wladmir Álvaro Pinheiro Jardim)

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